O que é verdade – e o que é mentira – sobre o conflito Israel-Palestina


Por Rodrigo da Silva





Com o desenrolar da guerra entre Israel e o Hamas, toneladas de propaganda viralizaram nas redes sociais nos últimos dias, distorcendo a realidade política da região. Uma luta vem sendo travada entre os defensores de Israel contra os defensores da Palestina. Essa é a hora de separar o que é História do que é ficção, e postar algumas verdades duras de engolir. Segue o guia:

1. Como é o sistema político de Israel?



Israel é uma democracia parlamentarista com um sistema multipartidário. O parlamento de Israel é conhecido como Knesset. O Knesset é composto por 120 membros, eleitos para mandatos de 4 anos. Nesse momento, os partidos com mais membros no Knesset são o Likud (32) e o Yesh Atid (24).

O Likud é um partido de direita, nacionalista, cético em relação a um processo de paz com os palestinos, liberal na economia e conservador nos costumes.

O Yesh Atid, principal opositor do Likud, é um partido liberal, de centro, representante da classe média secular israelense, que defende a separação de religião e Estado em Israel, e apoia a retomada das negociações de paz com os palestinos e a solução de dois estados.

O primeiro-ministro de Israel é geralmente o líder do partido com a maioria dos assentos no Knesset. O líder do Likud se chama Benjamin Netanyahu.Netanyahu é o primeiro-ministro de Israel, mas, desde a última semana, forma um governo de coalização que dirige o país durante os conflitos com o Hamas ao lado de um de seus principais adversários políticos: Benny Gantz, líder da Azul e Branco, a coligação dos partidos liberais israelenses.


2. Israel é uma democracia?



Israel ocupa a 29ª posição no Democracy Index 2022, feito pela Economist Intelligence Unit, à frente de países como Itália, Bélgica e Brasil.

No Varieties of Democracy (V-Dem), da Universidade de Gotemburgo, da Suécia, Israel é catalogada como uma democracia liberal, mas sua avaliação é um pouco pior: está na 39ª posição, à frente de países como Argentina, Grécia e Brasil.

O V-Dem cataloga 98% do Norte da África e do Oriente Médio como autocrata. É a região com a maior presença de ditaduras no mundo.

Israel é a única democracia da região, ocupando sozinha os 2% restantes.


3. A Palestina é uma democracia?



A Palestina é dividida em dois territórios: a Faixa de Gaza e a Cisjordânia. A Faixa de Gaza é governada pelo Hamas. A Cisjordânia é governada pela Autoridade Palestina.

A Cisjordânia ocupa a 135ª posição no V-Dem. A Faixa de Gaza ocupa a 156ª posição.

Há menos liberdade política nos territórios governados por essas autoridades, na Palestina, do que no Haiti, no Iraque e no Zimbábue.


4. Quais são os direitos civis garantidos em Israel?



Israel permite alguns direitos civis relativamente raros em outros países do Oriente Médio. Por exemplo: há mais liberdade de expressão e de imprensa em Israel que em outros países da região.

No ranking de liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras, Israel ocupa a modesta posição 97. Mas para efeito de comparação, a Palestina ocupa a posição 156, atrás de Afeganistão, Sudão e Emirados Árabes Unidos.

As mulheres em Israel também têm direitos significativos em comparação com os outros países da região.

No Índice de Desigualdade de Gênero produzido pela ONU, Israel aparece na posição 22, à frente de países como França, Itália e Portugal. A Palestina ocupa a posição 106.

Israel também é considerado o país mais progressista do Oriente Médio em relação aos direitos LGBT. Tel Aviv, em particular, é conhecida pela cena gay responsável pela maior parada LGBT da região.

No Equaldex Equality Index, principal base de medição de direitos LGBT no mundo, Israel aparece na posição 48. A Palestina está na posição 190 (só 7 países são mais intolerantes com a comunidade LGBT no mundo, quase todos eles no Oriente Médio ou no Norte da África).


5. Como a democracia israelense é protegida por Benjamin Netanyahu?



É aqui que as coisas complicam.

Nos últimos 27 anos, Benjamin Netanyahu liderou o governo israelense por 19. E nesse momento vem sendo acusado de tentar eclodir o Estado de direito em Israel.

Há poucos meses, Netanyahu aprovou uma reforma judicial que restringe as atribuições do poder judicial de Israel. Pela nova legislação, o Supremo Tribunal não pode impedir o governo de tomar medidas que os juízes considerem “extremamente irracionais”.

E isto é importante porque em Israel os tribunais são praticamente a única restrição ao poder do governo: não existe uma segunda câmara no país (como no Brasil, onde há um Senado e uma Câmara dos Deputados), nem uma constituição.

Como Netanyahu tem uma grande base de apoio no Knesset, sem enfrentar um contrapeso legal, poderá governar sem restrições. E por isso, Israel viveu até aqui 9 longos meses de protestos populares contra o governo, que levaram centenas de milhares de pessoas às ruas e geraram mais de 700 detenções.


6. Quais são os direitos dos árabes que vivem em Israel?



21% da população de Israel tem origem árabe. A maior parcela desse grupo é composta por muçulmanos sunitas. Os árabes que permaneceram em Israel após a criação do Estado, em 1948, são cidadãos israelenses com direitos civis completos, incluindo o direito de voto nas eleições nacionais e locais. Esses direitos são herdados para os seus descendentes.

No que diz respeito à sua identidade, a maioria dos árabes em Israel se identifica como palestino. Eles mantêm língua, tradições e costumes árabes.

Há duas forças políticas árabes em Israel: o Lista Árabe Unida e o Hadash-Ta'al. Cada uma delas tem 5 cadeiras no Knesset. Os árabes nunca ocuparam mais de quinze assentos no parlamento israelense.
A maioria dos cidadãos árabes de Israel vive em cidades e vilas com maioria árabe. Alguns desses lugares estão entre os mais pobres do país.

Hoje, quase todas as vilas e cidades árabes em Israel têm padrões de vida mais baixos do que aquelas predominantemente judaicas.

Tecnicamente não há uma segregação formal dessa população, como no apartheid sul-africano, mas muitos árabes reclamam de discriminação.

A decisão de estabelecer Israel como um Estado exclusivamente judeu, feita em 2018, também gera discórdia. Muitos árabes argumentam que a Lei do Estado-Nação, por natureza, coloca os não-judeus como cidadãos de segunda classe no país. Entre outras coisas, a lei removeu o árabe como uma língua oficial de Israel.

Israel também reivindica toda Jerusalém como sua capital e inclui todos os residentes da cidade nos seus censos, embora esta reivindicação territorial não seja reconhecida pelas Nações Unidas e seja contestada pelos palestinos, que vêem Jerusalém Oriental como a futura capital de um Estado palestino independente.

Muitos árabes que vivem em Jerusalém Oriental identificam-se como palestinos e, na prática, não são cidadãos de nenhum país.

Em 1967, com o fim da Guerra dos Seis Dias, a maioria dos árabes recusou a oferta de cidadania de Israel e, no lugar disso, recebeu o status de residente permanente. Hoje, 362 mil palestinos em Jerusalém Oriental detêm essa posição.

Mas com esse status, esses árabes não podem obter passaportes israelenses (muitos têm passaportes da Jordânia), nem votar em eleições nacionais.

Além disso, o estado de Israel pode revogar a residência de árabes que vivem em Jerusalém Oriental.
Desde 1967, mais de 14 mil palestinos de Jerusalém Oriental tiveram a sua residência revogada.


7. Como o governo Netanyahu piora o status dos árabes em Israel?



O governo Netanyahu é acusado de abrigar ministros abertamente racistas. O mais criticado pelos árabes é o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir.

Ben-Gvir é o líder do partido de extrema-direita Otzma Yehudit e está associado ao Kahanismo, uma ideologia ultranacionalista judaica fundada pelo rabino Meir Kahane (1932-1990).

Kach, o partido de Kahane, foi banido de Israel por racismo e incitação à violência. Em 2004, o governo dos Estados Unidos considerou o Kach uma organização terrorista.

Meir Kahane argumentava que para preservar Israel como um Estado judeu, seria necessário remover os palestinos, tanto dos territórios ocupados quanto de Israel. Para ele, Israel deveria anexar toda a Cisjordânia e a Faixa de Gaza e oferecer aos palestinos incentivos financeiros para emigrar para outros países. Se eles se recusassem, deveriam ser expulsos à força.


8. Como funciona a política de assentamentos israelenses?



A política de assentamentos de Israel diz respeito à prática de estabelecer comunidades civis israelenses em territórios que a comunidade internacional entende como palestinos.

Ao longo dos anos, esses assentamentos se expandiram, tanto em número quanto em tamanho. E isso só foi possível graças a uma combinação de incentivos governamentais, incluindo subsídios à habitação, infraestrutura e segurança.

Boa parte dos israelenses que apoiam esse movimento de colonização se opõe à ideia de um Estado independente palestino e vêem a Cisjordânia como um território do povo judeu.

Alguns israelenses também acreditam que os assentamentos são necessários para a segurança de Israel, argumentando que eles fornecem uma zona de proteção contra potenciais ataques de organizações terroristas palestinas.

Os palestinos dizem que esses assentamentos ferem a sua autodeterminação e minam qualquer perspectiva de um acordo de paz.

Diferentes organizações ocidentais, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, acusam a ocupação israelense da Cisjordânia e da Faixa de Gaza de produzir violações sistemáticas dos direitos humanos contra os palestinos que vivem nesses territórios.

Os israelenses são acusados de desapropriar, separar à força e subjugar os palestinos, em diferentes graus de intensidade.

138 dos 193 estados-membros das Nações Unidas reconhecem o Estado da Palestina (71,5%), incluindo o Brasil. Muitos dos países que não reconhecem o Estado da Palestina reconhecem a Autoridade Palestina como a “representante do povo palestino”, e não o governo de Israel. Mesmo os Estados Unidos, que não reconhecem um Estado soberano da Palestina, apoiam a solução de dois estados para o conflito.

Em 1996, quando Benjamin Netanyahu assumiu o governo de Israel pela primeira vez, havia próximo de 142 mil colonos israelenses vivendo na Cisjordânia. Hoje há quase 500 mil pessoas.

Netanyahu conta com o apoio de facções religiosas ultranacionalistas para expandir esses assentamentos.

Os assentamentos são administrados por um órgão chamado Administração Civil, parte do Ministério da Defesa de Israel. Esta entidade é responsável por emitir permissões de construção e fornecer serviços aos assentamentos.

Muitos assentamentos israelenses são bem desenvolvidos em termos de infraestrutura, e contam com escolas, centros de saúde, áreas de lazer e outras comodidades. Muitos são cercados e patrulhados por forças de segurança israelenses.

Uma parte importante dos residentes desses assentamentos tem fortes convicções ideológicas ou religiosas que os levam a viver nesses espaços.


9. E os bombardeios?



Tanto Israel bombardeia a Palestina quanto a Palestina bombardeia Israel. Mas há um lado que sofre mais baixas com o conflito: a Palestina.

Segundo a organização de direitos humanos B’Tselem, de Israel, entre 9 de dezembro de 1987 e 30 de abril de 2021, o conflito resultou na morte de 13.969 pessoas, sendo 87% delas palestinas.

Até os últimos atentados terroristas do Hamas, esse era o número de mortos gerados pelo conflito nos últimos 15 anos: 6.407 palestinos contra 308 israelenses. O ataque terrorista recente do Hamas matou mais israelenses num único dia do que em décadas.

Mas é um mito a ideia de que morrem mais palestinos do que israelenses no conflito porque o Hamas é menos sedento pelo sangue israelense.

Parte importante dessa desigualdade no número de mortos se dá porque enquanto o Hamas é uma organização terrorista, Israel é um Estado altamente desenvolvido militarmente.

A estrutura militar israelense é muito superior à do Hamas, e inclui um dos sistemas de defesa aérea mais avançados do mundo – o Iron Dome.

Israel tem indiscutivelmente melhores condições de se proteger dos ataques que sofre do que o Hamas.
A densidade demográfica também ajuda a explicar uma parte dessa desigualdade no número de mortes.
A densidade da Cisjordânia é parecida com a de Israel. Mas a da Faixa de Gaza, controlada pelo Hamas, é mais de 10 vezes superior.

Uma bomba que cai em Gaza tem chances bem maiores de alcançar uma grande concentração de pessoas do que uma bomba que cai em Israel.

Além disso, uma parte importante das bombas lançadas pelo Hamas caem, por despreparo, acidentalmente na Faixa de Gaza.

Por exemplo: em maio de 2021, Hamas e Israel travaram um confronto que durou 11 dias. Nesse período, o Hamas lançou 4,3 mil foguetes da Faixa de Gaza em direção a Israel, enquanto Israel lançou 1,5 mil bombardeios aéreos para a Faixa de Gaza. As ações de Israel deixaram um saldo fatal de pelo menos 230 mortes. Os foguetes disparados pelo Hamas mataram 13 pessoas em Israel e – por acidente – 15 palestinos em Gaza.

Para piorar, o Hamas usa escudos humanos nos conflitos com Israel. Essa tática consiste em:
– Disparar foguetes de áreas civis densamente povoadas na Faixa de Gaza. – Sustentar sua infraestrutura militar dentro ou próximo a áreas civis.

De acordo com o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, é considerado crime de guerra "utilizar a presença de um civil ou outra pessoa protegida para tornar certos pontos, áreas ou forças militares imunes a operações militares".

É o que o Hamas faz, e não porque não há espaço na Faixa de Gaza – que é pequena – para apoiar sua estrutura, mas porque essa é uma estratégia militar.

Israel tem a sua parcela de responsabilidade, mas o Hamas aumenta substancialmente a chance de civis palestinos morrerem quando traz o conflito para áreas civis densamente povoadas.
Cabe lembrar que o grupo, em sua carta fundadora, descreve sua luta contra Israel como uma jihad.


10. O que dizem as pesquisas de opinião?



As pesquisas de opinião apontam para uma Israel dividida.

36% dos israelenses apoiam a busca pela paz com base na solução de dois estados.
28% apoiam a anexação da Cisjordânia e o estabelecimento de um Estado único em que os judeus gozam de um status privilegiado. 11% apoiam a anexação da Cisjordânia e o estabelecimento de um Estado único com direitos iguais para todos. Os outros 25% não possuem uma opinião formada sobre o assunto.

As pesquisas palestinas são ainda menos otimistas.

O apoio à solução de dois estados é de 28% entre os palestinos. E a oposição é de 70%. 71% dos palestinos acreditam que a solução de dois estados já não é viável devido à expansão dos assentamentos israelenses. 53% dos palestinos apoiam os confrontos armados como escolha política para quebrar o impasse atual. 71% da população (79% na Faixa de Gaza e 66% na Cisjordânia) afirma ser a favor da formação de grupos armados. Hoje, o Hamas é mais popular entre os palestinos que a Autoridade Palestina.


11. Qual é a minha posição?



a) Tanto israelenses quanto palestinos devem ter o direito à autodeterminação, e a solução de dois estados é a que melhor respeita esse princípio. 

b) Os assentamentos israelenses são indefensáveis e constituem uma grave agressão à população palestina. 

c) O Hamas é uma organização terrorista que precisa ser repudiada e enfrentada. O mesmo deve ser dito sobre o Hezbollah. 

d) O fundamentalismo religioso nacionalista presente na extrema-direita israelense também precisa ser repudiado. 

e) Benjamin Netanyahu é uma péssima liderança política e seu governo está aumentando a insegurança de israelenses e palestinos. 

f) O Estado de Israel é a principal democracia do Oriente Médio, mas a qualidade do processo democrático israelense vem diminuindo sob o governo Netanyahu, e esse é mais um motivo para fazer oposição à sua liderança. 

g) Se os assentamentos israelenses desrespeitam a soberania palestina, um estado teocrático palestino também fere uma lista interminável de direitos humanos. 

h) É incoerente apelar para o humanismo para defender autodeterminação dos povos, mas assimilar violência política para naturalizar uma teocracia que subjuga mulheres, LGBTs e outras minorias. 

i) Uma escalada da violência não melhorará o status de israelenses e palestinos, nem aumentará a estabilidade e a segurança da região.

 j) Por pior que seja o governo Netanyahu, o que está acontecendo na Palestina não atende a qualquer grau de comparação com o Holocausto, quando mais de 6 milhões de judeus foram assassinados, muitos deles em câmaras de gás, em campos de extermínio. Quem realiza essa comparação apenas banaliza e diminui o que foi o nazismo. Essa é uma propaganda antissemita. 

k) Quem propaga antissemitismo, xenofobia, racismo, ou comemora a morte de civis – israelenses ou palestinos – deve ser execrado pela opinião pública. Com o desenrolar da guerra entre Israel e o Hamas, toneladas de propaganda viralizaram nas redes sociais nos últimos dias, distorcendo a realidade política da região.

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