Resenha: Teorias Cínicas




A obra “Teorias Cínicas”, de Helen Puckrose e James Lindsay, cuida-se de um compêndio explicativo sobre um aspecto bem particular da cultura dos países ocidentais e que se tornou mais óbvio em tempos recentes: trata-se do tema “Justiça Social”, em letras maiúsculas, que se diferencia do lugar-comum “justiça social”, a ideia corrente de equidade ou isonomia. “Justiça Social”, em letras maiúsculas, é toda uma nova cultura que nasceu dos movimentos “woke”, objeto de estudo dos autores.



Eles traçam um panorama do que se tornou hoje a intelectualidade e o ativismo da esquerda, embasada pela “Justiça Social”: um conjunto difuso de abordagens baseadas no pós-modernismo/pós-estruturalismo da década de 1970 que se coalesceu num movimento quase religioso, a “Teoria da Justiça Social”.



Inicialmente, explica-se o desenvolvimento histórico e teórico desse movimento que nasceu da insatisfação com as grandes narrativas, sobretudo o marxismo, a ciência e as religiões tradicionais. Tomando por base obras de autores como Michel Foucault e Jacques Derrida, muitos intelectuais propuseram a aplicação dos princípios pós-modernos a novas áreas do conhecimento. Entenderam que o conhecimento é determinado por sistemas de poder e que a sociedade é construída ao redor de privilégios e opressão. Consequentemente, o conhecimento neutro e objetivo é uma mentira. As pessoas reproduzem e performam suas posições sociais por meio da linguagem, geralmente de forma arbitrária e permanente, sem que tomem consciência disso.



A partir desses pressupostos, os estudos, cada vez mais politizados, voltaram-se à “análise crítica” dos temas centrais de opressão: gênero, raça, status imigratório, volume do corpo, deficiência etc. A tese do “ponto de vista”, segundo a qual as visões de mundo dos indivíduos são diretamente influenciadas por sua posição na sociedade e identidade estética, tornou-se preponderante.



A ideia de interseccionalidade desenvolvida a partida da década de 1990, isto é, a conjugação de identidades oprimidas, favoreceu o surgimento de uma espécie de Teoria Unificada, uma forma de ver o mundo que entendeu os princípios pós-modernos como reais: os sistemas de opressão subentendidos na sociedade tornaram-se verdadeiros e onipresentes. Trata-se da “Verdade segundo a Justiça Social”. Tais sistemas de poder são latentes e formam uma verdadeira lente pela qual os indivíduos veem e interpretam o mundo. Nada pode escapar disso, de modo que o poder regula todas as situações do cotidiano, desde a forma como as pessoas apreendem e percebem as coisas, até como falam e se dirigem aos outros, passando pelas relações sociais (trabalho, familiar, institucional).



Uma metanarrativa paranoica acerca de tudo – basicamente é o que constitui a Teoria sobre Justiça Social.



Ninguém pode se esquivar da dinâmica do poder que permeia a sociedade, conforme a abordagem foucaultiana, fundamental para entender a Teoria. O poder está lá, delimitando valores e percepções, influenciando como os indivíduos podem se relacionar uns com os outros, e tal poder é orientado pelos indivíduos dominantes: os homens brancos ocidentais. Não há como transcender essa realidade. Em outras palavras, o homem branco ocidental moldou o mundo à sua maneira e, portanto, definiu os valores de acordo com as suas preferências. Todas as outras formas de cultura foram relegadas ao esquecimento.



A partir dessas premissas, a “Teoria” deixou de ser apenas uma competência explicativa da realidade social (bem malformada cientificamente) e se tornou um sistema ético-religioso. Os demônios da mitologia cristã ocidental foram substituídos pelo “poder”, pelo “privilégio” e pela “opressão”. Tornou-se um pecado meramente negar a realidade do poder e não lutar contra ela.



Dessa forma, a Teoria ultrapassou as fronteiras dos círculos intelectuais e acadêmicos, invadindo instituições, empresas e comunidades com a sua noção vitimista e antagonista de tudo. A sociedade não soube como reagir em face da turba crescentemente hostil a todo aspecto da vida humana. Muitos, sem saber distinguir o que significa a “Justiça Social” e como ela se difere da ideia comum de equidade, acataram as cada vez mais paranoicas sugestões dos ativistas.



Em suma, “Teorias Cínicas” é uma boa obra explicativa do movimento pela Justiça Social. Pontos positivos: a forma didática como são apresentadas as origens desse movimento, bem como as teorias que lhe são subjacentes. As explicações são ancoradas em exemplos impressionantes sobre as consequências perniciosas de tais ideias. Ademais, os autores são honestos para explicitar qual o seu viés crítico (o do liberal clássico) e não negam o valor de outras abordagens, inclusive reconhecendo o mérito das próprias teorias que criticam.



Sob o aspecto negativo, observa-se que os autores não possuem uma bagagem teórica/filosófica densa – somente abordam a questão sob o viés liberal. Destacam o papel do projeto moderno (democracia, capitalismo, conhecimento científico/racional) em modificar a vida das pessoas de forma significativa e ressaltam a importância da manutenção de seus preceitos e sistemas. Todavia, parecem desconhecer que foi justamente a falência do projeto moderno que suscitou o que se chama de “pós-modernidade”, daí advindo esses movimentos que criticam. Ainda não temos respostas para as questões levantadas pela derrocada do modernismo iluminista, mas talvez o mero retorno às suas bases se mostre uma solução insuficiente.



Por fim, deve ser enfatizada a distinção entre as religiões seculares, especialmente a da “Justiça Social”, e as tradicionais – as primeiras perderam todo o sentido transcendental e místico dado às últimas. Esse ponto deveria ter sido abordado pelos autores. O movimento pela “Justiça Social”, apesar de ter uma base religiosa (tanto sob o aspecto social quanto normativo), carece de qualquer explicação transcendental de mundo. É um culto niilista, é a destruição de todos os valores estabelecidos, que são considerados injustos, em prol do narcisismo, em que as responsabilidades do indivíduo são diluídas no grupo social. A substituição de uma visão cosmológica abrangente, que dê significado e dignidade à existência humana, por um culto exacerbado ao egoísmo narcisista e à criação de um “sistema de castas” talvez seja o fato mais horrendo da ascensão da “Justiça Social”.

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