O horror



Eduardo Affonso, O Globo (14/10/2023)



São monstros que relativizam crimes de guerra. Desalojaram do cérebro todo senso de humanidade, para acomodar uma ideologia.

Cerca de 3 mil jovens se divertem num festival de música eletrônica. Em poucos minutos, ao menos 260 estarão mortos. Haverá estupros. Transeuntes serão baleados, aleatoriamente, nas estradas, nas ruas. Famílias, chacinadas dentro de casa. Pessoas torturadas serão exibidas como troféus. Pelo menos 150 civis — entre eles, idosos e crianças —, levados como reféns.

Talvez tenha havido um tempo em que a simples leitura desse parágrafo fosse suficiente para definir quem são os algozes, quem são as vítimas. Não mais. Um filósofo contemporâneo terá material de sobra — nos jornais, nas conversas, nas redes sociais — para desenvolver uma teoria sobre a relatividade do mal.

Poderá começar com as notas do PCO, presidido pelo jornalista Rui Costa Pimenta. Com os cadáveres ainda insepultos, ali se festejava: “Ontem foi um dia histórico não só para o povo palestino, mas para todos que querem ver o mundo livre da opressão, da tirania e do terrorismo. Todo apoio ao Hamas! Fim de Israel!” e “A violência e a guerra pode [sic] ser um espetáculo repugnante, mas elas são parte da política”.

E prosseguir com as declarações do jornalista Breno Altman, para quem “A guerra de um povo subjugado contra um Estado colonial é sempre justa. Esse é um marcador essencial para ler a situação palestina”. Quem precisa da Convenção de Genebra quando está do lado progressista da Força?
“O que o Hamas fez contra Israel é condenável e repudiamos. Mas nesta guerra não há inocentes”, ecoou o teólogo, filósofo e defensor dos pobres e excluídos, o ex-frei Leonardo Boff. Do seu ponto de vista, as crianças mortas no ataque de 7 de outubro carregariam o pecado original de ser judias.

Todos ignoram, por conveniência, que, além dos mais de mil assassinados em Israel, o Hamas também condenou à morte milhares de palestinos, ao fazê-los de escudo humano. Que, para o grupo terrorista, vidas palestinas importam tão pouco quanto quaisquer outras.

Soubemos, por fotografias e relatos, das tragédias do colonialismo, da escravidão, do Holodomor, do Holocausto. Pela televisão, tomamos contato com as atrocidades no Vietnã, na Bósnia, no Camboja, no Iraque, em Ruanda e Burundi. No que parecia ser o limite, assistimos aos vídeos da degola de prisioneiros, feitos por jihadistas. Chegamos agora a outro patamar: a transmissão, ao vivo, das execuções e dos abusos, orgulhosamente gravados pelos criminosos. Nossa geração não precisa estar no campo de batalha para ter uma experiência imersiva no horror.

“A ocasião faz o furto; o ladrão já nasce feito”, escreveu Machado de Assis. Esses que olham o horror nos olhos e não se horrorizam — ao contrário, debocham das vítimas em rede social, celebram nas universidades, abusam das conjunções adversativas, transbordam em eufemismos — há pouco bradavam por vacinas para salvar vidas, se comoviam com o drama dos ianomâmis, tinham na ponta da língua slogans para preservar o planeta.

São monstros que sempre estiveram, mais ou menos despercebidos, à nossa volta. Bastou a ocasião, e ei-los relativizando crimes de guerra, em negacionismo do pacto civilizatório. Monstros que desalojaram do cérebro todo senso de humanidade, para acomodar uma ideologia.

A sabedoria judaica ensina que quem salva uma vida salva o mundo inteiro. Mundos inteiros se perdem, neste instante, em Israel, na Faixa de Gaza. Os monstros comemoram.

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