Que se vayan todos



Por Fernando Schüler





Javier Milei causou sensação com seu desempenho nas primárias argentinas. Em parte, porque é um lobo solitário. Um “grito de guerra”, como diz o antropólogo Pablo Semán, o “que se vayan todos”, e faz mover os jovens dos bairros esquecidos da periferia de Buenos Aires. Mas a novidade é ser um “libertário”. Parte da imprensa apelidou Milei de representante da “extrema direita”, o que revela mistura de mau humor e preguiça intelectual.

O mais curioso foi ver o sujeito dito como um “alto risco para a economia argentina”, como escutei em um programa de televisão. O peronismo vai entregando o país quebrado, inflação a 115% e a pobreza atingindo 40% da população. Mas perigo é Milei.

As narrativas, desde sempre, definem o teatro da política. Nesse caso, dirão que ele foi instrutor de kama sutra e que dorme com seus cachorros, mas pouca coisa sobre fazer um programa de demissão voluntária no setor público e derrubar a carga tributária. Talvez isso tudo seja particularmente constrangedor por aqui, visto que andamos numa busca algo desesperada para aumentar impostos, enquanto abrimos concursos públicos como nunca e anunciamos o governo no “comando da economia”.

Um “liberal-libertário”, como se define Milei, diz basicamente que a liberdade econômica importa, tanto quanto a liberdade de escolher uma religião ou dizer o que pensa. E que cabe ao Estado agir com menos arrogância, diante da iniciativa individual. Alguma aberração nisso?

De fato, a tecnologia vai abrindo cada vez mais espaços de autorregulação, no mercado. O blockchain e as criptomoedas são um bom exemplo, assim como a sharing economy, ou “economia do compartilhamento”. Me lembro da conversa sobre o “absurdo” que seria deixar um monte de carros circular transportando pessoas, nas nossas cidades, sem licença das prefeituras. Hoje ninguém parece muito preocupado com isso. Ainda me lembro da época em que os aeroportos “só podiam ser estatais”. Hoje escuto a tese perfeitamente contrária. O mesmo vale para as estradas, para o saneamento, a iluminação pública, os cemitérios e mesmo nossos santuários ecológicos nos parques nacionais.

O programa de Milei mistura propostas liberais e disruptivas, centradas em uma reforma do Estado argentino, e pontos bem menos plausíveis, como o fechamento do Banco Central. Ele diz que fará uma reforma trabalhista. Algum absurdo nisso? Segundo o Ranking de Competitividade do Fórum Econômico Global, a Argentina tem o 132º pior sistema trabalhista entre 137 economias. O absurdo é fazer a reforma ou deixar do jeito que está?

Ele diz que privatizará empresas públicas. Vamos supor que ele consiga privatizar a TV estatal e as Aerolíneas Argentinas. Algum fim de mundo aí? Para que exatamente o governo precisa dispor de uma emissora de televisão e uma companhia aérea? Milei também promete custear a demanda, e não a oferta de serviços de saúde e educação. Isto significa: financiar o cidadão, e não as máquinas estatais. Muita gente faz drama com isso, mas é exatamente o que fazemos com programas como o ProUni e o Bolsa Família. Nesse último, governo deposita um recurso na conta das pessoas e cada um adquire os bens de deseja adquirir. Poderíamos distribuir cestas básicas, como já se fez no passado, ou criar uma rede de abastecimento estatal (alguém se lembra da Cobal?). É como funciona em Cuba, com a Libreta. Lembro do dia em que visitei um desses centros de abastecimento, em Havana. Me recordo do mau cheiro, o aspecto lúgubre. E da funcionária, debochada, me dizendo: “É estupendo o socialismo”.

No Brasil, enchemos a boca para falar da “escola pública” e da “saúde pública”, sem nunca descuidar de colocar os filhos em uma boa escola privada e dispor de um bom plano de saúde. Nossos alunos tiram as últimas posições do Pisa, a cada três anos, mas quando surge alguma proposta real de mudança, fazemos cara de inteligentes e resmungamos “não vai funcionar”. A verdade é que nos habituamos com o status quo, que me surpreende quando surge alguma força política disposta à mudança.

O que seria exatamente um “liberal-­libertário”, a condição de Milei? Na tradição brasileira, é comum a confusão entre o liberalismo e variantes da moderna social-democracia. Dado nosso imenso atraso, basta o sujeito ser a favor de alguma racionalidade no trato do dinheiro público e apoiar privatizações perfeitamente óbvias para que seja considerado um terrível liberal. No caso de Milei, a confusão vai por outro caminho. Será tido como um “ultradireitista”, o que não passa de nonsense. A pauta da chamada nova direita sempre foi uma mistura de nacionalismo, vezo iliberal e, principalmente, foco no conservadorismo de costumes. O oposto do que propõe Milei, cuja pauta é a abertura econômica. O “liberalismo por inteiro”, como virou moda falar, e que incorpora a liberdade econômica, de empreender, dispor de previsibilidade jurídica e igualdade de tratamento diante da lei, como parte essencial da liberdade individual, tanto quanto as garantias no terreno político e comportamental. (...)

O liberalismo é feito de “instituições inclusivas”, na expressão consagrada pelo economista Daron Acemoglu, capazes de proteger os interesses difusos da sociedade contra a malandragem dos grupos de pressão e “capturadores de renda”. O primeiro de todos é o próprio sistema político. (...)

A tarefa não é simples, e desconfio que qualquer um que tentar fazer algo será imediatamente tachado como excêntrico, perigoso, quando não uma aberração. Mas posso estar enganado. Os próximos meses do debate político na terra do tango e do escritor Jorge Luis Borges, quem sabe, nos sugiram alguma resposta.

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