Os democratas não entendem o que é ser latino
Por Rodrigo da Silva
Não tenho o hábito de comentar sobre minha vida pessoal neste espaço, mas hoje vou abrir uma exceção. Eu não moro no Brasil. Por conta disso, há algum tempo, adicionei à minha identidade uma nova condição – a de um imigrante. Mais do que isso: a de um imigrante latino-americano.
Até então, eu acreditava nunca ter renegado minha latinidade. Fui criado num lar onde Márquez, Llosa, Borges e Cortázar disputavam a tapa o espaço na estante. Cresci ouvindo Buena Vista Social Club, Omara Portuondo, Tito Puente e Juan Luis Guerra. Mas enquanto brasileiro, sempre estive preso num paradoxo: ter nascido no maior país da América Latina e não ser reconhecido como um latino-americano.
Não sou o único a conviver com essa incoerência. A nossa relação com os nossos vizinhos é, no máximo, cordial. O Brasil é o único lugar da América em que a língua oficial é o português. Mas ao mesmo tempo em que estamos cercados de falantes de espanhol, não convivemos com eles. Um sujeito que nasce em Fortaleza, a maior cidade do Nordeste brasileiro, está a mais de 3 mil quilômetros de distância de um sujeito que vive em La Paz, Caracas, Quito, Lima ou Assunção. Na verdade, se você vive em Fortaleza, está mais próximo de Praia, a capital de Cabo Verde, na África, do que da capital de qualquer país da América Hispânica.
Para nós, brasileiros, os nossos vizinhos são vizinhos distantes. E como estamos num continente distante, vivemos também distantes do resto do mundo, presos no nosso próprio universo.
Sim: os brasileiros vivem bem mais longe do mundo do que pensam. Embora muita coisa aconteça na América Latina, grande parte do que se passa no nosso continente está muito longe de qualquer outro lugar além dele próprio – sobretudo quando nós consideramos onde estão as principais potências do mundo.
Não é uma coincidência que a minúscula Lisboa, com os seus 100 km² de território, capital dos nossos inventores, receba mais turistas por ano que o Brasil, o quinto maior país da Terra.
Apesar das distâncias, nós compartilhamos muitas coisas em comum com os nossos vizinhos. Quem percebeu isso pela primeira vez, de forma mais abrangente, foi o economista liberal francês Michel Chevalier. Foi ele quem cunhou a expressão “latino-americano” na década de 1830. Chevalier tentou provar, através do livro Lettres sur l'Amérique du Nord, que havia uma raça latina na América, com uma identidade cultural separada da raça anglo-saxã (a primeira, romana; a segunda, teutônica).
O século 19 foi um período muito rico para essa discussão. Em 1850 e 1860, o pan-latinismo chegou a fazer barulho como um movimento intelectual relevante. Ele defendia que os povos latinos compartilhavam uma herança cultural, linguística e religiosa comum, marcada principalmente pelo catolicismo e as tradições greco-romanas. Os intelectuais pan-latinos enxergavam essas características como a base para uma civilização distinta na América, mais espiritual e artística em comparação à visão de mundo mais industrial e pragmática das nações anglo-saxônicas.
Esse é o pontapé da tentativa de criação de uma irmandade latina, um movimento de resistência às intervenções dos vizinhos abastados do norte e a construção de uma identidade política distinta, protegida da influência anglo-americana.
Não dá para dizer que a experiência foi bem sucedida. Ironicamente, o pan-latinismo causou mais impacto de dentro para fora do que de fora para dentro. O movimento até deixou um legado cultural de promoção dos laços entre intelectuais europeus e latino-americanos, e ajudou a consolidar um sentimento de herança compartilhada, capaz de influenciar a literatura, a música e a política no continente. Mas pouco fez para criar uma identidade coesa latina-americana.
Ainda hoje, não é fácil definir um latino-americano. Tecnicamente, quem nasce na Colômbia ou no México é tão latino-americano quanto quem vem do Haiti ou de Quebec, no Canadá. Embora exista algum grau de solidariedade cultural entre esses povos, isso nunca se traduziu em um movimento político unificado, ou em um sentimento homogêneo de uma identidade coletiva.
Isso acontece porque, apesar da herança cultural, a América Latina é extremamente diversa. Essa não é uma região pequena do mundo. Há 33 países no espaço conhecido como América Latina: 12 deles na América do Sul; 8 na América Central; o restante no Caribe. No total, 665 milhões de pessoas vivem nesse lugar.
Cada país latino-americano possui a sua própria história de formação, os seus conflitos internos e as suas relações muito peculiares com o mundo externo. Cada nação tem a sua própria mistura de culturas e tradições, entrelaçadas por séculos de colonização espanhola, francesa e portuguesa. Muitas delas comungam de rivalidades históricas – é o caso de argentinos e uruguaios, chilenos e peruanos, colombianos e venezuelanos, mexicanos e guatemaltecos, salvadorenhos e hondurenhos.
Em países como o México, a Argentina ou o Brasil, a formação da identidade nacional envolveu interações extremamente complexas entre diferentes populações indígenas, europeias (não apenas ibéricas) e africanas, algo que a narrativa pan-latina nunca conseguiu aglutinar de maneira coerente.
O espanhol é provavelmente o grande ponto de conexão desses lugares. A cada três latino americanos, dois falam o idioma. A América Latina é a região no mundo com o maior número de países onde um único idioma é a língua predominante. Mas apesar dessa facilidade na comunicação, não dá para dizer que essa é uma região integrada. Em primeiro lugar porque este é um continente com barreiras geográficas significativas, como a Cordilheira dos Andes (a cadeia montanhosa mais longa do mundo), a Floresta Amazônica (a maior floresta tropical do mundo), o Deserto do Atacama (o deserto mais seco do mundo), o Pantanal (a maior planície alagada do mundo) e o Salar de Uyuni (o maior deserto de sal do mundo).
Nós temos orgulho de todos esses monumentos da natureza, mas esses são entraves naturais que historicamente dificultaram a integração cultural e o comércio entre os países da nossa região.
As coisas ficam ainda mais complexas quando nós tentamos capturar o que significa ser um latino nos Estados Unidos. No norte do continente, latino ou hispânico surgiram como instrumentos para agrupar comunidades imigrantes, uma resposta às dinâmicas sociais e políticas muito particulares dos Estados Unidos. Latino, na terra do Uncle Sam, é mais demografia do que cultura compartilhada – um instrumento de autoidentificação coletiva em busca de um espaço de representação política e direitos civis.
Nesse momento, há pouco mais de 65 milhões de latino-americanos vivendo nos Estados Unidos. São 40 milhões de falantes de espanhol no país – o que significa dizer que só quatro países abrigam mais hispânicos no mundo: o México, a Colômbia, a Argentina e a Espanha. E esse número não para de crescer. Segundo o Instituto Cervantes, em 2060, os Estados Unidos serão o segundo país de língua espanhola do mundo, só atrás do México. Em quatro décadas, 27,5% da população dos Estados Unidos será de origem hispânica.
Nenhuma outra comunidade estrangeira tem um impacto tão grande na cultura, na língua, na economia e na política dos Estados Unidos. Se esse grupo formasse um país, seria a oitava maior economia do mundo e o maior mercado latino do planeta, mais rentável que o do Brasil e mais de duas vezes do tamanho do México. Na verdade, o PIB da população latina nos Estados Unidos é tão importante que cresce mais rápido que as economias da China e da Índia.
Desse grupo, a maior comunidade é a mexicana, que tem uma história de migração persistente desde o século 19. Os mexicano-americanos representam 11% da população dos Estados Unidos e 60% de todos os hispânicos e latino-americanos que vivem no país. São 37 milhões de pessoas nesse grupo.
Não surpreende que a maior concentração de latinos nos Estados Unidos esteja nos estados que fazem fronteira com o México.
Os outros 40% de hispânicos e latino-americanos que vivem nos Estados Unidos estão divididos em uma série de países de origem – sendo os 5 primeiros, depois do México, nessa ordem: Porto Rico (9,56%), Cuba (3,89%), El Salvador (3,87%), República Dominicana (3,67%) e Brasil (3,08%). Ainda há 2,84% de espanhóis ou espanhóis-americanos vivendo nos Estados Unidos (um grupo maior que a comunidade com origem na Colômbia, Venezuela, Argentina ou Costa Rica).
Essas pessoas não apenas alcançam os Estados Unidos de maneiras totalmente distintas, elas também sustentam histórias de vida muito particulares, e nem sempre se enxergam como parte de um bloco homogêneo.
Por exemplo: a migração mexicana está associada ao trabalho agrícola nos estados que fazem fronteira com o México; enquanto os imigrantes cubanos têm, quase sempre, status de refugiados e uma presença política bastante influente na Flórida. Muitos brasileiros que imigram para os Estados Unidos pertencem às classes mais abastadas, enquanto os porto-riquenhos, apesar da cidadania americana, enfrentam imensos desafios de identidade.
Não é fácil aglutinar os interesses dessas pessoas num único projeto político porque essas pessoas – mesmo com toda herança cultural, linguística e religiosa da Península Ibérica – são muito diferentes.
Em primeiro lugar, a maior parcela dessa população é formada por cidadãos americanos – e é apenas esse grupo quem tem o direito legal de votar numa eleição presidencial. 80% dos latinos que vivem nos Estados Unidos não têm status imigrante – são cidadãos americanos que, em muitos casos, nasceram nos Estados Unidos, filhos de gerações imigrantes já estabelecidas. Ainda há de 10 a 15% de latinos que vivem no país em situação irregular – até 11 milhões de pessoas. O restante é formado por imigrantes legais.
Para muitos membros dessa comunidade não há sequer uma comunidade compartilhada – a identidade “latina” é um rótulo externo, burocrático; uma conveniência demográfica.
A maior parte desses latinos se identifica, antes de tudo, como americanos. São pessoas que têm o inglês como língua materna, nascidas e criadas nos Estados Unidos, que nunca viveram em outro país (mais de 27 milhões deles se identificam com mais de uma raça). Essas pessoas não sentem a necessidade de acrescentar um asterisco latino às suas cidadanias. Para elas, a latinidade é apenas uma ideia distante; uma herança imaterial dos seus pais e avós (como um ítalo-brasileiro ou um sansei). Mesmo quando essa ancestralidade ocupa um papel de destaque nas suas formações, ela está ligada às suas nações de origem, e não à América Latina.
É verdade que 2/3 dos imigrantes ilegais que alcançam os Estados Unidos são membros da família de outro imigrante ilegal que já mora no país. Eles alcançam os Estados Unidos através de um processo chamado migração em cadeia. Cada imigrante que consegue o objetivo de morar nos Estados Unidos, patrocina, em média, 3,45 membros da própria família para tentar a sorte ilegal, um fluxo de imigração quase interminável.
Mas muitos dos latinos que vivem nos Estados Unidos – sobretudo os cidadãos, que votam nas eleições presidenciais – não pertencem a essa cadeia. Mais do que isso: boa parte deles compartilha da preocupação com a imigração ilegal, que colabora para arranhar a imagem latina nos Estados Unidos e diminuir os seus status sociais.
Esse é o grande erro dos democratas: menosprezar o fato de que esses eleitores podem escolher o voto republicano de maneira consciente.
Há diferentes motivos por que um latino escolheria votar no Partido Republicano. Em primeiro lugar, muitos latinos têm raízes católicas e evangélicas, o que se traduz em valores sociais conservadores. Eles estão culturalmente muito mais afastados, por exemplo, da bandeira do direito ao aborto – tão importante para os democratas nesse último ciclo eleitoral – do que outros grupos.
A questão econômica também é relevante. De acordo com uma pesquisa do MIT, um imigrante tem chances 80% maiores de abrir uma empresa do que uma pessoa nascida nos Estados Unidos. 55% das startups bilionárias dos Estados Unidos – aquelas empresas que nós chamamos de “unicórnios” – foram fundadas por imigrantes (319 de 582). Esse número sobe para quase 2/3 (64%) quando consideramos também as empresas fundadas por filhos de imigrantes.
Muitos dos imigrantes latinos são pequenos e médios empresários, importantes para a economia local. E em busca do american dream, eles podem preferir políticas econômicas de menor regulamentação e maior incentivo ao empreendedorismo, propostas comuns entre os republicanos.
E ainda há a segurança. Em comunidades onde o crime é uma preocupação crescente, políticas que prometem maior policiamento e leis mais rigorosas podem atrair maior atenção dos eleitores latinos. Em muitos casos, essa pode ser a causa mais importante de um eleitor latino na hora de escolher o seu candidato. E é o Partido Republicano – não o Partido Democrata – quem está associado à bandeira da law and order.
Por fim, latinos que vieram de países com sistemas políticos instáveis, com governos grandes e centralizados – como Cuba, Nicarágua ou Venezuela – também podem ter uma desconfiança natural em relação a políticas públicas que ampliam a intervenção governamental. E esta rejeição também cai sobre os ombros democratas.
Foi Ronald Reagan quem disse:“todos os latinos são republicanos, eles só não sabem disso ainda”. Essas razões ajudam a compreender os incentivos que levam um latino a votar pelo Partido Republicano.
O maior erro que um partido político americano pode fazer em nome desse eleitorado – que alguns progressistas chamam estupidamente de latinx, aumentando a sua rejeição – é tratá-lo como uma ideia abstrata. No fim do dia, os eleitores latinos compartilham das mesmas preocupações que outros grupos sociais nos Estados Unidos – muitos deles assimilados à cultura americana – e consideram risível a ideia de que estão em dívida com o Partido Democrata, tutelados por um grupo político.
E esse é um grande problema para os democratas. Os latinos aparecem consistentemente nas primeiras posições quando se trata da taxa de fertilidade entre os grupos demográficos dos Estados Unidos. Os Estados Unidos viram um aumento de 24,5 milhões de pessoas na sua população entre 2010 a 2022: os hispânicos foram responsáveis por 53% desse aumento. A previsão é que, até 2060, 111 milhões de americanos tenham origem latina.
Quanto maior for a busca do Partido Democrata em discutir política pela ótica da identidade, e menor for o seu interesse em debater política pela ótica do serviço público, mais distantes estarão os democratas em entender por que esses eleitores escolhem o voto republicano.
Talvez seja a hora de ouvir o que esses eleitores têm a dizer, ao invés de tentar falar em nome deles.
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