Escola e escolarização

Por Gustavo Bertoche


Amigos, comecei a dar aulas no Ensino Médio em 1999, quando estava no segundo ano da graduação em Filosofia. Ou seja: há mais de vinte anos passei a freqüentar a sala de professores.

Nesse ambiente, quase não presenciei discussões sobre processo pedagógico, sobre currículo, sobre métodos de ensino. Em lugar disso, ouvi com enorme regularidade reclamações quanto a prazos para entrega de notas, quanto a salários baixos, quanto a alunos “mal-educados”, quanto a resultados de jogos de futebol.

A conclusão é inevitável: há algo de podre na nossa escola.

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Um professor é um intelectual. O seu principal instrumento profissional é o seu pensamento – o que inclui a sua memória, a sua erudição e a sua capacidade de reflexão. Por isso, supõe-se que ele seja capaz de refletir sobre o seu trabalho, isto é: sobre o sentido da Educação, sobre a meta do processo pedagógico, sobre os métodos adequados ou inadequados para que essa meta seja alcançada.

Todavia, raríssimas vezes encontrei colegas educadores interessados em discutir a própria Educação. Quando levanto a questão, a maior parte das reações dos meus colegas varia entre a galhofa e a repreensão – sim, repreensão, sob a acusação corporativista de que eu estaria atrapalhando os interesses de classe.

Por “interesse de classe”, entendam-se dois interesses distintos: de um lado, os professores da rede particular, interessados em manter a maior carga horária semanal possível para aumentar o seu salário; de outro lado, os professores da rede pública, interessados em pegar a menor carga horária semanal possível quando têm um salário fixo. Esses interesses divergentes convergem, dialeticamente, na busca pela maior eficiência: pela obtenção do maior salário possível, com o menor esforço possível.

Essa situação é compreensível: viver no Brasil é difícil. Parece que tudo conspira contra nós: o Estado sempre nos atrapalhando, os diversos fenômenos da violência nos restringindo a ação, os salários baixos, a falta de incentivos para a formação continuada. O trabalho intelectual padece ainda de outro mal: o desprezo do governo e do povo diante da produção acadêmica. Os professores não são incentivados a pensar, a estudar, a pesquisar: a busca incessante da satisfação das condições materiais para a sua sobrevivência é um obstáculo real à reflexão sobre o processo educacional.

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Com isso, nós, professores brasileiros, acabamos por naturalizar a nossa situação profissional absurda: como denunciou em 1952 o físico Richard Feynman, ensinamos os nossos alunos “a resolver provas”, mas ignoramos o porquê e o para quê disso. Adestramos os estudantes a solucionar exercícios sobre o conteúdo do currículo, do livro didático, da “apostila”, mas jamais refletimos sobre as razões, as metas e as conseqüências do ensino desse conteúdo.

Quase sempre queremos simplesmente “cumprir o planejamento” para evitar aborrecimentos. Se o currículo explícito nesse planejamento não tem nenhuma ligação com o talento e a vocação de um aluno, o problema não é nosso. Se não existe nenhuma conexão do conteúdo curricular com a vida social e espiritual dos estudantes, não é nosso o problema.

Se vamos “reprovar” crianças por não conseguirem resolver exercícios sobre assuntos com que jamais se depararão na vida, o problema é delas.

Não nos importa que o currículo seja absurdo, que os métodos pedagógicos sejam maçantes, que não exista nenhuma ligação do mundo escolar com a vida real. Estamos cumprindo o nosso trabalho, e é isso o que importa.

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O que poucos professores percebem é que, ao participarmos dessa fantasia que são as nossas escolas, agimos diretamente para a perpetuação e a ampliação da pobreza material, intelectual e espiritual da nossa sociedade.

Afinal, ao lado do currículo oficial que não tem o menor sentido existe outro, bem mais influente: o currículo oculto. E qual é o nosso currículo oculto?

Em outras palavras: o que ensinamos realmente na escola enquanto fingimos ensinar a matéria curricular?

- Ensinamos a realizar atividades absurdas, sem propósito claro, com a finalidade de obter notas abstratas que decidirão o futuro deles;

- ensinamos a obedecer à autoridade, a baixar a cabeça diante de ordens arbitrárias;

- ensinamos que os alunos não têm direito nem mesmo à autonomia do próprio corpo, ao autorizarmos ou desautorizarmos o ato de ir ao banheiro, de beber água, de sentar-se ou de levantar-se;

- ensinamos que não é preciso saber nada de fato, mas sim dar a impressão de saber, para que seja resolvida uma prova com questões muito parecidas com aquelas que foram resolvidas em classe;

- enfim, ensinamos a ser desonestos, quando marcamos uma avaliação e esperamos que os alunos estudem especificamente para ela; memorizar textos e soluções de exercícios no dia anterior, para uso utilitário e imediato esquecimento após a prova, é um tipo de cola, é um tipo de desonestidade intelectual. E somos nós, professores, quem encorajamos, por ação ou omissão, essa má utilização das faculdades cognitivas dos estudantes.

Isso significa que a nossa escola, longe de ser a solução para os problemas estruturais da nossa sociedade, é em grande parte causa deles. A escola brasileira é uma escola de autoritarismo e de desonestidade, e o seu currículo oculto se constitui essencialmente de lições de obediência e de “jeitinho”.

Isso tudo vale tanto para a escola pública quanto para a privada. Digam o que disserem os anúncios publicitários das redes de escolas particulares, raras são as boas instituições escolares no Brasil – não há boas escolas entre as que afirmam oferecer "um ensino forte" em função do vestibular ou do Enem. É necessário dizer com todas as letras: do ponto de vista da verdadeira formação intelectual, as escolas que estão no topo do ranking do Enem estão entre as piores que podemos encontrar.

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E de onde vem esse nosso currículo oficial?

A despeito de várias reformas na legislação educacional brasileira, ainda vivemos sob a sombra da organização escolar imposta pelos militares por meio da lei 5692/71. Essa lei estabelecia o currículo básico que ainda hoje se faz presente nos vestibulares e nos livros didáticos.

A lei 5692/71 determinava a formação focada no mercado de trabalho técnico-industrial típico dos anos 60 e 70: os governantes militares queriam que a maior parte dos estudantes brasileiros saísse do Segundo Grau pronta para assumir postos técnicos numa fábrica ou para cursar uma faculdade de Engenharia. Daí a ênfase desmedida na área de ciências naturais que ainda vemos no nosso currículo.

E o resultado disso? Além de termos um currículo oficial generalista, autoritário e absurdo, que não leva em consideração as aptidões e vocações dos nossos alunos, a nossa escola prepara para os empregos de 50 anos atrás.

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Mas nada disso é discutido na sala de professores. Afinal, os professores são intelectuais que, por força das circunstâncias, acabam por abandonar a reflexão, transformando-se em técnicos do ensino: profissionais preocupados com os aspectos práticos do seu trabalho, sem o interesse em compreender as razões e as conseqüências do que fazem.

Os nossos professores escolares, portanto, quase nunca educam: eles instruem. E a instrução que eles proporcionam é completamente equivocada: está distante dos interesses e das aptidões dos nossos alunos, está apartada das necessidades da vida da sociedade e do espírito, ensina a desonestidade e o fingimento, e prepara os jovens para um mundo que já não mais existe.

Nesse sentido, julgo que as campanhas a favor da escola integral, as campanhas de defesa das instituições escolares, as campanhas anti-homeschooling não são campanhas pró-Educação. Pelo contrário: elas são campanhas a favor de uma instituição que desconhece o que a Educação significa.

Afinal, os termos "escolarização" e "Educação" não são sinônimos. Uma escola pode deseducar; é a situação que infelizmente encontramos no nosso país. Neste caso, mais escolarização significa menos Educação, significa mais estupidez, significa mais desonestidade.

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A escola é importante: ela é a instituição basilar da Modernidade. Porém, daí não se segue que devamos defender todos os sistemas escolares. Há sistemas escolares viciosos, que mais prejudicam do que beneficiam os indivíduos e a sociedade. Em nome da Educação, eles precisam ser reinventados para que possam propiciar algo que entre nós é quase desconhecido: uma escola educadora. Uma escola educadora, com professores que não sejam meros técnicos da Educação: com professores que sejam também educadores, e que na sala de professores tenham prazer em criar estratégias conjuntas para impulsionar o talento específico de cada um dos seus alunos.

Será que em algum dia conhecerei uma sala de professores assim?

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