O sentido de uma república
Por Fernando Schüler
Leio que a União move uma ação contra uma produtora de
vídeos. A razão é um documentário sobre o julgamento de Maria da Penha, vítima
de duas tentativas de homicídio, nos anos 1980. O caso foi julgado em 1991, com
a condenação de seu ex-marido. Em 2006, foi votada a lei no Congresso que leva
o seu nome. A história é bastante conhecida, e não vai aqui juízo de mérito
sobre os argumentos em jogo. A ação diz que o documentário traz “argumentos
distorcidos” e “informações incompletas”, que seus autores não consideraram
“apropriadamente” as alegações do processo judicial e que o material não atende
a “critérios de veracidade”. Raras vezes li, mesmo no estranho Brasil dos
últimos anos, um documento oficial que afirmasse de modo tão claro a ideia do
Estado disciplinador da verdade. Não deveria me impressionar muito com essas
coisas, me dizem. Há muito teria se perdido, no Brasil, a ideia simples de que
a sociedade é diversa, que documentários, assim como filmes e livros, expressam
visões divergentes. E que não cabe ao Estado usar de seu poder de violência,
sua máquina jurídica, para empurrar goela abaixo dos cidadãos essa ou aquela
opinião, essa ou aquela religião, ideologia ou visão de mundo.
Para entender melhor essas coisas, imaginem: estamos em
2027, um candidato do outro “lado” político ganhou as eleições, e esse mesmo
órgão de Estado, agora sob outra direção, resolve processar autores de
documentários e opiniões que contradigam a “sua” verdade sobre alguma lei,
personagem histórico ou política pública. Você pode imaginar qualquer coisa.
Alguém “ofende” o presidente? Chama de “nazista”? Faz um documentário
“incompleto” sobre o novo teto de gastos, que está “destruindo” políticas
sociais? Vai aqui um velho hábito dos filósofos. Inverte-se o lugar dos atores
no jogo para ver se a regra pode ser universal. Ou ao menos “impessoal”, como
diz a Constituição. Sejamos claros: é um completo nonsense admitir que a
opinião e a crítica dos cidadãos devam corresponder a algum critério de verdade
estipulado pelas pessoas que ocupam posições de poder. E que essas pessoas
possam mover a máquina jurídica do Estado contra quem pensa de maneira
divergente. Vale o mesmo para a ideia de que uma decisão judicial ou política
pública não possam ser criticadas. Ou que pessoas que dão nome a legislações
não podem ter algum item de sua biografia rediscutido. Haveria então, quem
sabe, um panteão dos indiscutíveis. E sem perceber voltaríamos, em pleno século
XXI, à ideia da infalibilidade do Estado. Isso além de mandar pelos ares um
direito elementar dos cidadãos. Boa parte do que temos de melhor na modernidade
foi feita exatamente do questionamento a decisões judiciais. A campanha de
Voltaire para a revisão do caso Jean Calas; a carta histórica de Zola
criticando o processo contra o capitão Dreyfus. Isso e inúmeros casos, no
Brasil ainda muito recente. Não acho que o Brasil queira se transformar em um
país do Estado-verdade. Do Estado-dogma. Acho apenas que estamos deslizando
nessa direção, ao sabor da guerra política.
O fato é que, no transe brasileiro, vamos normalizando toda
sorte de agressão a direitos. Ainda nesta semana, lia sobre a multa de 20 000
reais dada a Filipe Martins por aparecer, calado, ao lado de seu advogado, em
uma postagem na internet. Recuei um pouco no tempo, até 2019, e foi curioso ver
as mesmas pessoas que hoje aplaudem uma coisa dessas bradando que era um
“inalienável direito constitucional” de Lula, então preso, dar entrevistas. E
mais: que era um direito dos cidadãos terem acesso àquelas opiniões. Perfeito.
De minha parte, sempre concordei com isso. O curioso é ver o mesmo tribunal, e
as mesmas pessoas, anos depois, mandando multar um sujeito por aparecer, mudo,
em um vídeo com seu advogado. O.k., os justificadores de qualquer coisa
justificarão mais essa, pois esse é seu ofício. Dirão que aquela imagem poderia
ser uma “ameaça à democracia” ou quem sabe um tipo inovador de “discurso de
ódio”. Quando o direito se converte em qualquer coisa, nenhuma lógica ou
justificação, no fundo, é necessária para o uso do poder.
Não há jeito nenhum de uma República funcionar dessa
maneira. Dias atrás, a Espanha recusou a extradição de mais um jornalista
punido no Brasil por suas opiniões. Chamou atenção o que disse a procuradora
espanhola Teresa Sandoval: os “atos do jornalista”, diz ela, que no Brasil
seriam “crime de abolição violenta do estado democrático de direito”, na
Espanha “não são crime” e estão “amparados pela liberdade de expressão”. A
procuradora Sandoval não é nenhuma líder da “direita global” e não há
conspiração alguma em curso. Ela diz o mesmo que já disseram autoridades
americanas, muito antes da posse de Trump, quando recusaram uma extradição nos
mesmos termos. E no fundo é o que disse o último relatório sobre a democracia
global, da revista The Economist, onde o Brasil declina seis posições, entre
outras razões, por abusar das “expressões vagas” para punir e censurar.
O que o Brasil precisa é de um choque de bom senso. Fazer
voltar a valer garantias individuais escritas com clareza em nossa
Constituição, que por muito tempo nos fizeram sentir orgulho de nossa
democracia. Voltar a temas elementares do “devido processo”. O juiz natural, o
foro adequado, a individualização das penas, a impessoalidade do Estado, a
atenção ao que está tipificado em lei, e não a “uma opinião particular do
juiz”, na expressão que não é minha, mas foi escrita há quase três séculos, em
um livro magnífico, O Espírito das Leis, por Montesquieu. E que por alguma
razão voltei a reler, recentemente.
Tempos atrás, escutei de alguém que estes “temas das
garantias” não eram tão importantes assim, pois teríamos outras urgências no
país, como a economia e a educação. Gentilmente, como costumo fazer, discordei.
De fato, uma boa democracia, feita à base da lei, capaz de respeitar direitos
individuais, não resolve nossos problemas. Mas é condição para que eles sejam
resolvidos. É mera ilusão imaginar que vamos evoluir, como uma grande
democracia que decidimos nos tornar, nos anos 1980, insistindo nas “definições
vagas” no lugar que deveria pertencer às prerrogativas individuais. É ilusão
imaginar que isso só acontecerá no mundo político, e não na vida econômica. E
que acontecerá com os “outros”, que por hora são nossos inimigos políticos. O
problema republicano importa porque é ele que permite que os cidadãos expressem
as suas ideias, com liberdade. Permite que o parlamento funcione e nossos
representantes possam dizer o que julgam que devam dizer, sem medo. Isso do
mesmíssimo jeito que permite que os agentes econômicos confiem nas leis, na
previsibilidade do jogo e invistam, em especial visando ao longo prazo. E, por
fim, por uma ideia algo misteriosa, quem sabe um secreto orgulho, de viver em
um país sem dono, sem “delito de opinião”, sem censura prévia, onde os agentes
de Estado não têm preferências e os direitos valem para todos. Pois esse, no
fundo, é o sentido de uma República.
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