Efêmero como fumaça
EFÊMERO COMO FUMAÇA
Era uma tarde fria de sábado, numa metrópole brasileira qualquer. O labirinto de concreto da cidade suspirava logo abaixo do céu carregado e sem cor, enquanto Felipe acordava vagarosamente em seu quarto, após uma sesta mal dormida.
– Ontem, o ministro decretou a prisão do jornalista Dilan dos Santos, por tê-lo difamado em um blog... – A velha TV de tubo estava ligada e um repórter comunicava as últimas notícias. O chiado que provinha do aparelho assemelhava-se ao zumbido de moscas, que revoavam na cabeça do sujeito como um enxame. Mas ele não prestava atenção ao noticiário, cada vez mais absurdo, mas sim no bichinho que crescia em seu estômago.
– Que revertério! – Grunhiu, enquanto se remexia inquieto entre as cobertas.
Horas antes, almoçara um hambúrguer barato no trailer próximo ao trabalho, alimento que saíra de uma piscina de gordura ancestral. Definitivamente, aquela não havia sido uma boa refeição. Por isso, acendeu um cigarro e pôs-se a fumar no aposento exíguo, esperando dubiamente que o leve torpor daquele tabaco acalmasse suas entranhas.
– Nesta manhã, o ministro aproveitou um churrasco no Alvorada... – O zumbido continuava, mas Felipe não parecia se importar. Seus olhos eram linhas finas, oblíquas e escurecidas, como dois traços desajeitados feitos em uma folha, e somente tomaram a forma arredondada quando o noticiário parou de mostrar a face do repórter e passou para uma outra cena, um tanto inacreditável: um pênis gigante que saía de um emaranhado de panos escuros, como se um ator pornô tivesse sido coberto por um cortinado, deixando à mostra apenas os seus dotes. Felipe se contorceu, incrédulo, esfregando as feições remelentas e deixando o cigarro aceso na cabeceira da cama. Para a sua decepção, quando recobrou a vista, percebeu que o noticiário não havia sido hackeado: era apenas a cabeça de sua excelência, o ministro.
– Argh! – Ele grunhiu de novo. Sim, tinha repulsa das notícias de Brasília, mas queria ter visto algo extraordinário que temperasse o insosso de sua vida.
Agarrado às cobertas, levantou-se e pôs-se diante da janela. Divisou a cidade lá embaixo, perdido em pensamentos confusos que logo se dissipavam, tal qual a fumaça translúcida do tabaco queimando. Vários minutos se passaram em completo devaneio, até que o rapaz desviou os olhos da rua e vislumbrou com relutância a grande desordem que era o seu quarto. Pilhas de roupas jogadas por todos os lados, sapatos revirados e cinza de cigarro impregnada nos móveis. Uma imundície digna de pena. Culpava a falta de tempo, pois saía de manhãzinha diariamente, apressado, sem arrumar a cama ou guardar os objetos espalhados. Quando chegava em casa depois de um dia de labor, simplesmente retirava as roupas, punha-se no chuveiro para, em seguida, acomodar-se nos lençóis sujos e encardidos. Não tinha disposição (nem educação) para organizar aquilo, embora os vizinhos de seu cubículo frequentemente reclamassem dos odores indesejados que emanavam de lá. Não tinha condições de sair dali: seu salário era miserável.
Mas ele tampouco se importava.
– Está na hora.
No momento, concentrava suas elucubrações na programação noturna de sábado. Aquela era sua válvula de escape, a única forma de transcender a sua existência entediante, estúpida e sem importância. Religiosamente, nos finais de semana, encontrava-se com seu grupo de “amigos”, na verdade um bando que mal se conhecia, mas que se juntava para se divertir e entorpecer na noite. Entupiam-se de substâncias tóxicas e regozijavam-se em prazeres efêmeros, desprezando as consequências de seus atos. Não pensavam no futuro e, para eles, o passado era como o retrovisor sujo do carro: não precisavam dele para dirigir.
Uma notificação sonora ressoou do aparelho celular.
– Vish!
Debruçando-se sobre a tela, Felipe passou a ler as mensagens que pipocavam frenéticas. Eram seus amigos que o convocavam para um encontro noturno. Definiam horários, locais e mantimentos. Num piscar de olhos e na certeza de uma frase de poucos caracteres, encerrava-se a reunião virtual e começavam os preparativos.
O rapaz destacou sua jaqueta preferida do armário, feita de um couro velho e surrado, juntamente com uma camisa preta sólida e uma calça jeans comum: suas roupas preferidas. Desbotadas, é verdade, mas que ainda mantinham o vigor adolescente. Despiu-se, entrou no chuveiro, lavou o sebo acumulado de um dia de trabalho, enxugou-se. Passou seu perfume e colocou a vestimenta. Trancou a porta do quarto e dirigiu-se para a saída, quase se esquecendo de arrumar o cabelo no espelho do corredor. A vaidade patética e os traços bonitos contrastavam com os já proeminentes sinais de cansaço advindos de seus excessos.
Saindo do conjunto onde vivia, foi a pé pelas ruas escuras até o bar mais próximo, localizado a um ou dois quarteirões de distância: uma espelunca que servia cerveja barata em mesas de latão enferrujado. Lá, encomendou uma garrafa de Brahma e tomou o primeiro trago encostado na parede que dava para a rua. Incomodou-se com um grupo de velhos repugnantes que rugia na mesa ao lado, talvez rindo de alguma piada sem graça, enquanto balançavam suas enormes barrigas. Aqueles velhos que mais pareciam buldogues babões, com suas grandes bocas salivando um contentamento sórdido e decadente. Velhos que relegaram a seus filhos e netos um nada que era o futuro.
Um deles levantou-se abruptamente, ainda carregando aquele sorriso encardido.
– Vou tirar água do joelho.
Em seu tropeçar de álcool, esbarrou em Felipe.
– Olha por onde anda! – O rapaz esbravejou.
O velho, então, lançou uma seta de escárnio em resposta:
– A bichinha ficou ofendida, é?! – O cuspe veio logo a seguir.
Felipe era pavio curto e ressentia-se com frequência. Guardando o celular, os lábios retos e os olhos injetados, mirou o velho de cima a baixo e disse:
– O que você acha de irmos bater um papo ali fora, só eu e você?
– Ô, seu moleque! Enquanto você usava fraldas, eu comia sua mãe! Não me enche!
Sobrancelhas arregalaram-se e a música do rádio baixou. A plateia formada ao redor fitava-os com a apreensão de apostadores das bets, torcendo pelo pior, exceto os velhos da mesa, que se preparavam para tocar aquele enrustido para fora do covil.
Até que uma figura adentrou o recinto, preenchendo-o com sua presença:
– Pessoal, pessoal, parem com isso! Olhem, vou pagar uma cerveja para vocês! – Disse a figura, enquanto bloqueava o campo de visão dos dois gladiadores com uma latinha de cerveja. Felipe não reduziu a encarada, mas, diante da persistência do interventor, que balançava a lata freneticamente, desviou a atenção para ele. Foi quando percebeu quem era: Léo.
– Meu camarada, pode ficar com isso! – Disse Léo ao velho, entregando-lhe a cerveja. O senhor, ainda mirando a face de Felipe, não disse coisa alguma, apenas tomou a lata para si e partiu para o lavabo. A tensão caiu e o grupo de vagabundos acompanhou, sentando-se.
– Vamos, Felipinho! – Léo sussurrou em seu ouvido, enquanto dava um tapa em suas costas. Ele era um sujeito que todos queriam por perto. – Você está numa valentia, hein!
Os amigos então se sentaram numa mesa do lado de fora, longe dos olhares inquisidores dos demais. Felipe serviu um pouco de sua cerveja ao outro e indagou:
– Você vai lá hoje?
– Claro! O que tenho a perder?
Tudo. Mal sabia Léo onde estava pisando...
* * *
Horas depois, um grupo de cerca de vinte pessoas reunia-se em torno de uma praça suja no centro da cidade. Ali, já em meio à escuridão e ao frio que vinha com a noite, eles fumavam, bebiam e se entorpeciam. Falavam alto e discutiam assuntos corriqueiros, dentre os quais a nova “mercadoria” que fulano havia trazido. Fora prometido um trago para cada integrante do bando, antes de adentrarem no inferninho previamente combinado na reunião online.
Felipe estava afastado em um canto soturno, num estado de leve embriaguez que lhe conferia um aspecto distante e indiferente, contrariando a balbúrdia de seus companheiros. Contudo, ele se sentia bem. A tormenta de pensamentos que tanto perturbava seu cotidiano se dissipava pelo efeito do álcool, trazendo uma sensação de bem-estar e autocontrole extraordinária. Além disso, naquela ocasião, havia pessoas no grupo que ele não conhecia e isso despertou-lhe a curiosidade.
Passou a encarar os demais, num estado de contemplação quase infantil. Com os olhos, percorreu o ambiente: lá estavam desconhecidos das mais variadas tribos e matizes. Homens, mulheres, gays, brancos, negros, pardos, pobres e ricos. Encantou-se com aquela diversidade. Contudo, deteve-se numa garota em especial, que se encontrava com um grupo de amigas a alguns metros de distância. Coincidentemente, ela também o encarava e eles trocaram olhares curiosos. Visou seu corpo, percebendo sua beleza um tanto quanto ingênua e pueril, mas provocativa. Portava um vestidinho preto colado, o qual realçava suas curvas bem delineadas. Os olhos negros e profundos resplandeciam de sua pele clara e macia, penetrando-lhe a alma com agudez. Não deixou de reparar, também, numa grande tatuagem de dragão, que subia uma das pernas até chegar à coxa desnuda.
– Ah, Felipinho! Tá fazendo o que aí, escondido?! – Sua contemplação foi interrompida pela pândega do companheiro Léo. Ele sempre vinha cortar o barato...
O sujeito, em contraste à meditação zen-budista de Felipe, estava eufórico. Divertia-se às gargalhadas, um tanto espalhafatoso. O álcool era o catalisador de sua já bem conhecida extroversão, e ele se tornava o centro das atenções.
– Vamos lá para o meio da galera, pô!
– Léo, quem é aquela garota da tatuagem?
O amigo levantou os olhos num relance.
– Amanda, amiga de uns amigos. Curtiu, é?! Posso te apresentar... – Léo já se encaminhava em direção à mocinha.
– Espera um pouco!
Felipe, embaraçado pela audácia repentina do amigo, tentou demovê-lo da ideia, aturdido que estava por aquela visão angelical. Queria mais alguns tragos de cerveja para ganhar coragem, mas Léo já se entremeava no grupo e retirava Amanda de lá. Quando retornou para onde Felipe estava, concedeu a mão da moça, como um pai com a sua filha num casamento.
– Prazer, tudo bem, como vai...
E eles foram apresentados. A moça era linda. Embora estivesse nervoso, tudo ia bem, pensou Felipe, e o vazio de sua vida foi esquecido por um breve momento. Léo, o cupido, ria ao lado deles.
Mas, sem qualquer aviso, o mundo bateu forte à porta daqueles jovens.
Ninguém sabe de onde, surgiu um magricela de regata e bermudas, empunhando um revólver pequeno demais para suas mãos nervosas. A folia do grupo maior não foi perturbada. Ele foi direto até o canto escuro e afastado onde estavam os três.
Era magro como um galho seco, os olhos arregalados e a boca fina, tremendo com o peso do revólver barato. Sua voz oscilava entre o desespero de um garoto e o ódio de quem já tinha apanhado demais da vida:
– Perdeu! Perdeu! Passa tudo!
Os companheiros, aturdidos, levantaram as mãos.
– O celular, playboy!
Léo bateu com as palmas nas calças, buscando freneticamente o aparelho. Encontrado, jogou-o para o marginal. Amanda, de seu turno, já deixava a bolsa nas mãos do assaltante, ao passo que Felipe estava com os olhos vidrados na cena, incapaz de reagir.
– Acorda, filho da puta!
O rapaz aéreo tomou um tapa na cara e finalmente voltou a si, tateando pelas roupas em busca de qualquer coisa para entregar.
Até que as asas do destino bateram outra vez.
Um giroflex da patrulha noturna foi percebido. Em segundos, uma viatura virava a esquina cantando os pneus, mas aquilo, ao invés de trazer alívio às três vítimas, soou estranhamente agourento, como se a sirene fosse um brado vindo de alguém mais sujo do que o pivete; este que já deixava tudo no chão e corria de volta às trevas de onde veio. Igualmente, a galera da praça deu no pé, abundante que estava de pertences proibidos. Mas Léo, Felipe e Amanda ficaram estáticos, a adrenalina a mil, como que pregados com cola ao chão de concreto. Era coisa demais acontecendo em um intervalo de pouco segundos.
– Todo mundo pro chão! Pro chão! Mão na cabeça, bando de vagabundos! – O policial logo desceu da viatura com a arma em punho, gritando para os três, numa algazarra feroz. Eles imediatamente deitaram-se de bruços, os braços em formato de asas ao redor da nuca.
– Se não tiver carteira de trabalho, vai ser preso! – Outro sujeitão fardado esbravejava ao lado do veículo. Parecia um sargento. Para infelicidade do grupinho, ninguém ali portava carteira. Felipe, o único que a tinha assinada, esquecera-a em casa.
Sem mais nem menos, a troco de nada, os três eram encaminhados para o camburão, a face entre os joelhos, numa mistura de incredulidade e medo. Estavam curtindo a vida despreocupados, a juventude aflorada na pele, até que foram barrados numa batida estúpida da polícia.
Léo, muito agitado, tentou contemporizar.
– Seu policial, o que fizemos?
– Cala a boca e entra aí! Só converso na delegacia.
Para o alento dos demais, o pivetinho assaltante não foi longe. Uma motocicleta da polícia dera com ele numa rua próxima e também o recolheu sem cerimônia.
Levados à delegacia, todos foram acomodados num banco sujo, sob o olhar cansado de um escrivão fumante que preenchia o boletim de ocorrência. Enquanto digitava, ele parava a cada instante para ajustar o som de um rádio antigo, o qual tocava um funk com letras grotescas.
O ar estava saturado de suor e desinfetante barato. Nos cantos do teto, teias de aranha balançavam suavemente sob a luz de um ventilador ruidoso. Policiais debruçados sobre cadeiras quebradas folheavam jornais velhos enquanto, ao fundo, um preso gritava, mas ninguém parecia ouvir.
Léo foi o primeiro a ser interrogado e via na tela do computador algumas informações. “Batida executada em ponto de venda de drogas”; “Alguns elementos recolhidos para averiguação”; e assim por diante. A mesma ladainha de sempre.
– Nome e ocupação? – Resmungou o escrevente.
– Leonardo de Oliveira Vasconcelos. Desempregado. – O jovem respondeu, apático.
O oficial então digitou as informações em um formulário eletrônico e, após um clique no mouse, Léo notou um leve arquear de suas sobrancelhas por cima dos óculos embaçados de sujeira. Ele parecia perplexo...
– Leonardo, tem um mandado de prisão em aberto contra você.
– O quê?! Como assim? O que foi que eu fiz?
– Aqui diz que você perpetrou o crime de abolição violenta do estado democrático de direito.
– Mas que diabos?! Abolição...
– Você participou de uma tentativa de golpe de estado.
– Como isso é possível? Seu polícia, olha bem para mim... o que um sujeito desempregado de vinte anos, morando com os pais, poderia fazer?
– Não tem como eu te dar maiores detalhes... aqui só está escrito que tem um mandado em aberto. Espere um pouco... ah, sim. Tem a descrição do fato. A PF diz que você comentou em uma rede social: “Abaixo o cabeça de piroca!”.
– É isso? Eu vou ser preso por isso?!
– Sim. Ordem direta do ministro. Por favor, acompanhe o cabo Roberto até a cela.
Nesse momento, um brutamontes fardado veio por trás, agarrando-lhe o braço e pondo-o de pé.
– Um completo absurdo!
– Nós temos os seus dados. Vamos comunicar a prisão aos seus familiares. Daí você vê um advogado.
– Calma, por favor! Não, não pode ser! Isso é um pesadelo... – Léo gritava pelo corredor, enquanto era carregado pelo grandalhão.
Ele passou aos berros por Felipe e Amanda, que pareciam não se importar: estavam perdidos num amasso dos mais calorosos. Aproveitaram o tédio da delegacia para continuar o flerte e esqueceram completamente do amigo. Na verdade, Felipe, já enredado nos olhos negros de Amanda, sentiu o nome de Léo evaporar de sua memória como a fumaça do cigarro do escrivão.
Quando a porta da cela se fechou atrás do rapaz, um som metálico ecoou pelo corredor. Era como se o clique da fechadura tivesse apagado sua existência do mundo dos dois que, lá fora, se deliciavam, rindo de algo que nem eles entendiam direito.
Nesse momento, outro policial trouxe o pivete pelo braço até o notário.
– Esse é o sujeitinho que estava com a arma de brinquedo?
– Ele mesmo!
– Falei com o delegado, pode liberar... não dá nada.
– E os outros dois?
– Os pombinhos? Ah, deixa pra lá. Já pegamos um peixe grande hoje...
***
Meia-hora depois, Felipe e Amanda, completamente esquecidos de Léo e dos acontecimentos anteriores, já estavam na porta do evento. Era o porão de um edifício abandonado do centro da cidade que havia sido transformado em boate. De longe, os transeuntes podiam sentir as batidas graves do equipamento de som instalado no subsolo. As janelas dos prédios ao redor chacoalhavam com o barulho, enquanto uma pequena multidão se aglomerava em torno da diminuta entrada do local.
As luzes da cidade pareciam ofuscadas, como se um véu sujo cobrisse a noite. A cada esquina, mendigos enrolados em cobertores observavam o casal com olhares vazios, enquanto os dois, num contraste soberbo, cresciam em euforia à medida em que se aproximavam da fila.
Os passos de Felipe e Amanda ecoavam nas calçadas imundas, passando por vitrines trincadas e pichações que, em letras grandes, anunciavam o colapso: 'Viva o Caos'. Um rato gordo se esgueirava por entre sacos de lixo rasgados, indiferente às luzes piscantes que vinham da entrada da boate.
Em pouco tempo, estavam íntimos. Não foram necessárias muitas palavras. A súbita paixão veio pelo flerte intenso e pelo álcool. Trocavam carícias e beijos ardentes, enquanto esperavam para entrar no recinto, totalmente alheios à movimentação intensa ao redor. Em determinado momento, quando já se aproximavam do início da fileira, a mocinha retirou sabe-se lá de onde um pequeno envelope plástico, procurando ocultá-lo de olhares curiosos. Dentro dele, havia um comprimido rosa, que Felipe logo identificou como sendo a “mercadoria”.
– Essa garota é cheia de surpresas... como conseguiu esconder da polícia?
– Estava bem guardadinho lá embaixo!
– Safadinha...
A moça, então, partiu-o em dois, utilizando os dentes, e entregou a metade para o companheiro, tomando para si o restante. Deixaram-no derreter na boca e depois tragaram um gole de cerveja. Deram um demorado beijo de língua e, logo em seguida, desceram pela escada que dava acesso ao porão esfumaçado da boate. O resto é história.
* * *
Felipe lentamente abriu os olhos. Suas pálpebras pareciam dois blocos de concreto e a visão estava embaçada. Decorreram vários minutos até que ele conseguisse recobrar a consciência e os sentidos. Sua cabeça parecia estar recebendo golpes de martelo. Enfim, depois de muito esforço, ele se levantou, cambaleante, para entender o que se passava.
Estava em seu velho quarto desarrumado e fétido. Que bom, pensou ele. Ao menos não se encontrava na casa de um desconhecido ou num motel asqueroso da periferia, como já havia acontecido outras vezes. Em cima da cômoda, ao lado da cama, jazia seu celular com a tela quebrada. Merda. Mesmo assim, conseguiu ligar o aparelho e ver o horário. Esfregou os olhos: eram dezesseis e quarenta de domingo e ele não tinha a menor ideia do que ocorrera nas últimas vinte e quatro horas.
Em meio a um sono irrequieto, havia sonhado com uma bela menina que portava uma tatuagem de dragão na perna. Entretanto, da noite anterior, lembrava-se apenas de flashes. Luzes coloridas entrecortadas, gente rindo e gritando, um sujeito fedido de cigarro numa sala bolorenta. Mas, de concreto, coisa nenhuma. Acessou os aplicativos de seu telefone para tentar recolher os cacos de sua memória destruída pela droga. Viu mensagens frívolas de desconhecidos e de pessoas do seu círculo social que pareciam tão perdidas quanto ele. Uns poucos lhe rasgavam elogios, mas ele não entendia o porquê. Por fim, vislumbrou de relance, enquanto mexia no celular, um brilho pálido vindo do parapeito da janela.
Deslizou até a abertura para identificar o estranho brilho. Era um par de brincos que refletia a débil luz do sol poente. O que seria isso? Será que a garota da tatuagem de dragão era real? Felipe riu consigo mesmo.
Enquanto observava os brincos no parapeito, uma ponta de algo que parecia arrependimento lhe cruzou o peito. Mas foi rápido demais e ele desconhecia a fonte. Tragou o pensamento junto com o ar abafado do quarto e o esqueceu, como fazia com tudo.
Voltou a caminhar para a cama, quando pisou em algo pegajoso. No chão, uma camisinha usada. Deu uma gargalhada. Em seu celular, sequer uma mensagem ou número que identificasse a pessoa que havia estado com ele em seu quarto. Apenas uma vaga lembrança (que mais parecia um sonho) e o par de brincos esquecidos no parapeito da janela.
No entanto, ele não se importou. Em sua existência insignificante, as pessoas iam e vinham a todo momento. Sublimavam e dissipavam, como se fossem a brisa quente das baforadas de um fumante. Uma existência vazia, deformada e inconsciente. A vida, para ele e seus camaradas, era apenas uma sucessão de fatos, valorados como bons ou ruins de acordo com a sua percepção do presente.
Assim decorreram seus breves anos. A chama do dragão logo se tornou a risada cadavérica de um homem senil e enrugado, que se entretém tomando cerveja aos sábados sentado nas cadeiras enferrujadas de uma espelunca abjeta.
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