Consenso científico

 Por Gustavo Bertoche


Em 2015, Richard Horton, editor-chefe do Lancet – possivelmente o mais importante jornal científico de medicina no mundo –, declarou acreditar que "talvez metade" das pesquisas científicas publicadas em periódicos sejam fraudulentas. (Nada indica que as coisas tenham melhorado de 2015 para cá).
Escreveu Dr. Horton:

"O caso contra a ciência é simples: grande parte da literatura científica, talvez metade dela, pode simplesmente ser falsa. Atingida por estudos com amostras pequenas demais, efeitos minúsculos, análises exploratórias inválidas e evidentes confllitos de interesses, juntamente com uma obsessão por seguir tendências da moda – de importância duvidosa –, a ciência deu uma guinada na direção das trevas. Como um participante afirmou, 'métodos ruins geram resultados'. A Academy of Medical Sciences, o Medical Research Council e o Biotechnology and Biological Sciences Research Council colocaram a sua reputação em questão diante de uma investigação a respeito dessas questionáveis práticas de pesquisa. É alarmante o caráter aparentemente endêmico do mau comportamento na pesquisa. Na sua busca por contar uma história convincente, os cientistas freqüentemente demais esculpem os dados para que eles se ajustem à sua teoria preferida de mundo. Ou adaptam as hipóteses para que elas correspondam aos dados. Os editores dos periódicos científicos merecem a sua cota de crítica também. Nós ajudamos e encorajamos os piores comportamentos. Nossa aquiescência ao fator de impacto alimenta uma competição na qual o prêmio é um lugar nos periódicos mais seletos. Nosso amor à 'importância' polui a literatura com muitos contos de fada estatísticos. Rejeitamos importantes confirmações. Mas os jornais não são os únicos vilões. As universidades estão numa luta perpétua por dinheiro e talento, metas que favorecem métricas redutivas, como a da publicação de grande impacto. Os procedimentos de avaliação nacional, como os Research Excellence Framework, incentivam más práticas. E cientistas individuais, incluindo os mais antigos líderes, pouco fazem para alterar uma cultura de pesquisa que ocasionalmente se aproxima muito da má-conduta." (Richard Horton, "Offline: What is medicine's 5 sigma?". The Lancet, 11 de abril de 2015, página 1380).

Isso significa que a ciência não é sagrada; ela não é a voz da Verdade. Há tanta fraude no meio científico quanto em qualquer outro meio; os cientistas não são anjos, e estão sujeitos à influência da ideologia, do ethos de seu tempo, da política de seu departamento, dos interesses econômicos, da vaidade.

Além disso, a ciência não tem porta-vozes autorizados; cada laboratório privado, cada departamento acadêmico, cada grupo de pesquisa possui a sua própria ontologia, a sua própria metodologia, o seu próprio meio de financiamento e o seu próprio ethos – e diferentes grupos podem sustentar teses muito divergentes sobre o mesmo objeto de investigação.

Por isso, não é sensato acreditar na fantasia segundo a qual existe um "consenso científico" – muito especialmente quando se trata da formulação e da execução de biopolíticas.

Como escreveu Rubem Alves, "a ciência hoje se tornou um mito"; mas mitos, quaisquer que sejam, não são guias adequados para as decisões políticas que afetam a nossa vida. Toda tecnocracia acaba por tornar-se tirânica.

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