Bilionários

Por Fernando Schüler

No auge da brabeza global pela compra do Twitter, por Elon Musk, li um curioso argumento, dito por um ativista de redes sociais. Segundo ele, toda vez que Musk fica mais rico, a humanidade ficaria mais pobre. Na sua cabeça, imagino, a riqueza global deve ser como uma espécie de bolo gigante, de modo que se algum guloso pega um naco muito grande para si, sobra menos para os demais. Uma deputada resolveu ser mais direta: bilionários “nem deveriam existir”, disse ela. Me caiu os butiá dos bolso, como se diz lá no Sul. O que o sujeito faria, exatamente, se abrisse uma empresa e ela começasse a crescer? Vendendo sua participação, outros ficariam bilionários. Se o governo confiscasse cada centavo ganho acima de 1 bilhão, por que ele continuaria investindo e fazendo negócios? Por esporte? Desconfio que não ia funcionar.

Há uma enorme confusão aí sobre como se gera valor e como alguém se torna um bilionário, em uma economia de mercado. Tem um site curioso na internet mostrando a variação da fortuna de cada super-rico global a cada cinco minutos. O sujeito pode ganhar ou perder alguns bilhões, de uma hora para outra, pela simples razão de que pessoas, mundo afora, acharam por bem comprar ou vender ações desta ou daquela empresa. Alguns leram um relatório bacana, outros deram ouvido a algum boato, e ainda acreditaram na dica de um vizinho com cara de esperto no elevador. Não importa. O bilionário que eu mais ajudo a ser um bilionário é Jeff Bezos. Não compro ações, mas livros, em sua loja virtual. Faço isso por puro autointeresse. Eu poderia comprar ali na livraria do bairro, que segura as pontas como pode, mas acabo não me dando ao trabalho. Às vezes penso que estou sendo egoísta fazendo isso. Em todo caso, ao menos no que me diz respeito, a teoria daquele ativista não funciona. A cada vez que eu compro um livro lá, Bezos fica mais rico e eu de bem com a vida. Estamos quites.

Há quem ache, imagino, que exista uma “aristocracia global”, como li por estes tempos, transmitindo sua fortuna de geração em geração. De fato, há muita gente que herda sua fortuna. Não vejo problema nisso. Há os que investem ainda mais, geram ainda mais riqueza, e outros torram tudo. Me lembro das histórias de Jorginho Guinle, nosso eterno playboy, gastando até o último centavo e batendo as botas sem um vintém, no Copacabana Palace. Há os que ganham pelo casamento, como a ex-mulher do Bezos, MacKenzie Scott, que se tornou uma das mais ativas filantropas do planeta. Semanas atrás, doou 27 milhões de reais à ONG brasileira Gerando Falcões, focada em criar oportunidades para nossos jovens de menor renda. O ponto é que essa história da aristocracia global é quando muito uma meia-verdade. Entre os 400 mais ricos do planeta, na lista da Forbes, 70,5% não herdaram coisa nenhuma. Fizeram sua fortuna por conta própria. Para se ter uma comparação, eles eram menos da metade da lista, em 1984. A globalização e a revolução tecnológica criaram um mundo de possibilidades, mas por óbvio há quem goste de fazer de conta que nada mudou.

Há muitas coisas interessantes a discutir sobre os bilionários. A primeira delas é sobre como foi obtido o dinheiro. Se o sujeito cria uma empresa inovadora, em um mercado aberto, oferecendo algo que melhore a vida das pessoas, temos mais é que contar a sua história em nossas escolas e inspirar mais jovens nesta direção. Foi o que fez o Pedro Franceschi, guri carioca de 25 anos que criou uma fintech inovadora, de cartões de crédito, e neste ano consta lá da lista da Forbes, com 1,5 bilhão. Vai fazer o que com Pedro? Pedir a ele que devolva meio bilhão? Pedir para ele se aposentar? De minha parte, acho o oposto. É bom que ele exista, e que o seu sucesso sirva de exemplo. Ideias inovadoras fazem o mundo andar para a frente. Pode ser uma empresa de turismo popular, que um dia vai oferecer pacotes econômicos para as pessoas darem uma voltinha espacial, ou uma que ofereça consultas médicas, em locais acessíveis, a pessoas que não têm plano de saúde. É assim que funciona o tal do “mercado”, desde que feito de regras iguais para todos: um sistema aberto de informação, sinalizando para as pessoas o que falta, o que os outros desejam, o que pode melhorar a vida, e que ninguém ainda havia pensado. O que realmente deveríamos combater é a riqueza obtida da fraude. Do privilégio criado pelo mundo político, do favor para este ou aquele “campeão” de qualquer coisa, do Congresso resolvendo criar alguma regalia ou dar 20 bilhões do bolso do contribuinte a alguma “zona franca”.

O que realmente deveríamos fazer é mudar o disco. Trocar o ângulo de visão. Em vez do ranço contra quem inova e gera valor, perder o sono com o que se passa na base da pirâmide. Perguntar como é possível, em pleno 2022, que um quarto da população brasileira ainda viva em situação de pobreza ou extrema pobreza, e dependa de uma transferência de renda irrisória do governo para viver; que doze estados brasileiros tenham mais dependentes do Auxílio Brasil do que carteiras assinadas; e que ensinemos menos de 5% do que nossos alunos deveriam saber de matemática, nas redes públicas, no fim do ensino médio, depois imaginando que eles terão boas chances, no mercado de trabalho. Este é o país do faz de conta, e é com ele que deveríamos nos preocupar. Nossa desigualdade social é moralmente inaceitável não pela distância da renda entre a classe média e os mais ricos, mas porque até hoje fomos incapazes de assegurar o básico para que cada indivíduo possa viver a vida que desejar viver.

Se ele se tornar um bilionário, como aqueles 70% da lista da Forbes, que fizeram a própria vida, tanto melhor. Que sirva de exemplo. Que ele possa voltar lá onde nasceu e dizer para todo mundo que ele só “chegou lá”, ao contrário do que pensa nosso ativista, porque melhorou a vida de muita gente. E que em algum momento possa mandar uma carta para o The Giving Pledge, doando 50% ou 90% de sua fortuna, como já fizeram 231 bilionários, mundo afora, incluindo um único brasileiro, Elie Horn. Sua doação solitária nos lembra sobre quem somos, e sobre quanto ainda temos de caminhar. Sobre como é preciso persistir e olhar para a frente, em vez de tomar, todo santo dia, o veneno das velhas ideias.

Artigo originalmente publicado na revista VEJA.

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