O STF virou piada



Por Lygia Maria







Um motorista encosta o carro numa venda para pedir informação. "Amigo, bom dia! Eu tô precisando de um habeas corpus para um empresário investigado pela Lava Jato, sabe onde é que eu consigo?". O comerciante responde sem titubear: "Habeas corpus é lá com o Gilmar Mendes".



Essa piada está num vídeo de 2018 do grupo humorístico Porta dos Fundos, que não foi acusado na Justiça por difamar o ministro do STF. Trata-se de sátira protegida pela liberdade de expressão.

A jurisprudência brasileira tende a afastar o dolo dos crimes contra a honra quando há animus jocandi (intenção de fazer rir). A mais alta corte do país, contudo, vai no caminho contrário.



Em junho de 2024, a Primeira Turma do STF aceitou denúncia contra Sergio Moro (União Brasil-PR) feita pela PGR, que acusa o senador de caluniar Gilmar Mendes; neste mês, formou maioria para rejeitar o recurso da defesa.



Em vídeo que viralizou em abril de 2023, Moro aparece numa festa junina falando sobre a brincadeira chamada "cadeia" (pagar uma prenda para tirar alguém da "prisão"). Alguém diz que ele "Está subornando o velho", e Moro responde, rindo: "Não, isso é fiança. Instituto para comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes".



Não só o contexto explícito de zombaria foi ignorado pela PGR e pelo Supremo, mas a jurisprudência do STJ: "O crime de calúnia não se contenta com afirmações genéricas". É preciso descrever o fato específico, marcado no tempo, imputado à vítima —o que o chiste de Moro não faz.



Ademais, como o vídeo foi postado —por terceiro, diga-se— em abril de 2023 e se passa numa festa junina, Moro provavelmente nem sequer era senador. Assim, o caso deveria ser tratado na 1ª instância, não no Supremo.



E esse é o tribunal que invade a seara do Congresso e se arvora a regular liberdade de expressão nas redes sociais, como mostram o interminável inquérito das fake news, a derrubada do artigo 19 do Marco Civil da Internet e o julgamento em curso no âmbito da trama golpista que pode abrir precedente para criminalizar desinformação. O STF virou piada —sem graça, o que é pior.

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