Resenha: O Povo contra a Democracia

Leia com cautela


O Povo contra a Democracia é o terceiro livro de um dos autores mais aclamados pelo “mainstream” midiático no momento, Yascha Mounk. Doutor em Harvard e professor da John Hopkins, Mounk de fato alia rigor acadêmico a um verniz de honestidade intelectual para tentar explicar a nova dinâmica política que ocorre hoje no Ocidente. 

Sua principal tese é a de que a democracia liberal vem se desconsolidando nas últimas décadas. Refutando o antigo consenso de estabilidade dos regimes democráticos, o autor demonstra que os atuais movimentos políticos estão tendentes a assumir posturas extremistas. O resultado seria a degeneração do regime democrático-liberal em dois outros intermediários no caminho até o autoritarismo: a democracia iliberal e o liberalismo antidemocrático. 

O autor assume a hipótese de que as condições nas quais a democracia liberal vicejou não estão mais presentes, quais sejam, a homogeneidade étnica, o crescimento econômico contínuo e o consenso político. Os motivos para que esses fatores não mais existam seriam, para ele, essencialmente a imigração em massa e o choque étnico-cultural; as novas e disruptivas tecnologias midiáticas; e a estagnação econômica dos países desenvolvidos. Isso gerou um conflito interno entre as instituições liberais e a vontade popular, ocasionando a ascensão de populistas autoritários no mundo todo e a fragilização dos outrora sólidos fundamentos democráticos. 

Para Mounk, o remédio para o fenômeno seria o aprofundamento dos ideais da democracia liberal: a defesa intransigente de seus valores universais, que, segundo ele, não são efetivados na prática. Assim, propõe melhores redes de proteção social adequadas à economia do Século XXI; uma forma de patriotismo inclusivo, agregando cidadãos à diversidade; um retorno educacional às virtudes cívicas do sistema, afastando soluções extremistas; dentre outras. 

Confesso que, em um primeiro momento, achei a obra fascinante. De fato, o autor esmiúça aspectos conturbados da política atual. As análises do sistema político concebido no Ocidente são bastante oportunas, evidenciando o que há de melhor na ciência política. Importantes também suas observações sobre o futuro: estaríamos a caminho de um século de experimentação política? Na pior das hipóteses, de predomínio do despotismo nacionalista? O que fazer para evitar esse cenário e valorizar os princípios da democracia liberal? As indagações levantadas são bastante pertinentes e ninguém é poupado de suas críticas, sejam grupos de esquerda ou de direita. 

Entretanto, em uma análise mais detida, senti-me enganado. 

Sim, não há outro termo para se descrever a sensação ao ler alguns pontos (fulcrais) do livro. Neles, Mounk subestima a inteligência do leitor, criando falsas dicotomias e manipulando dados e discursos para reforçar sua tese. Conduz a audiência até uma conclusão que, se esmiuçada, prova-se fraca ou mesmo falaciosa. 

O exemplo mais enfático disso se mostra quando Mounk discorre acerca dos custos habitacionais nas grandes cidades do mundo desenvolvido. Segundo ele, em 1960, o aluguel médio de um apartamento em Nova York era de 200 dólares por mês. Em 2010, a cifra subiu para 3,5 mil dólares! Um incremento de 1650%! Esse número assombroso de aumento no custo habitacional é, contudo, FALSO! Se o leitor não checar a obscura nota do final do livro, provavelmente será levado a um equivocado sentimento de repulsa, deliberadamente pretendido pelo autor. Nela, ele deixa claro que fez uma comparação SEM CONSIDERAR CORREÇÃO MONETÁRIA. Em valores atualizados, o aluguel de 1960 corresponderia a 1,5 mil dólares. Ou seja, incremento de pouco mais de 100%, em um espaço de 50 anos, algo nada impressionante e pouco condizente com o valor apresentado no início. 

E, infelizmente, não é o único momento em que Mounk utiliza desses ardis. Noutro, cita um trecho d’O Federalista, uma série de escritos dos líderes da independência dos EUA, mostrando que a democracia representativa nunca foi idealizada visando à participação do povo, mas sim pretendendo afastá-lo das decisões políticas. A frase citada está claramente DESCONTEXTUALIZADA. O trecho, atribuído a James Madison, relaciona-se ao papel do Senado, uma instituição concebida por ele justamente para EVITAR A DITADURA DA MAIORIA. 

E assim prossegue o texto, repleto de armadilhas e recursos espúrios. Por vezes, são utilizados de maneira mais sutil, quando, por exemplo, o autor assevera que condições econômicas são importantes para se aferir o apoio a populistas, mas apresenta estudos em nota que sugerem justamente o contrário: não há relação de causalidade alguma (fatores culturais seriam mais importantes). Ou seja, uma das premissas básicas da tese de Mounk – que a desconsolidação democrática se deve à apreensão econômica – se mostra bastante fraca. 

A repetição de contradições e sofismas acaba por minar sua credibilidade e faz o leitor se perguntar até que ponto as reflexões trazidas na obra são válidas. Ademais, a hipocrisia fica patente nos alertas do autor: na mesma medida em que cobra sensatez no debate público, repudiando difamações e análises simplistas, pratica tal nível de desonestidade intelectual. Justamente para não ser taxado de desonesto, deixa as contradições para notas de rodapé e citações obscuras, as quais passam desapercebidas pela maioria dos leitores incautos. 

Por fim, Mounk abusa do senso-comum. Suas propostas econômicas, por exemplo, são risíveis: majorar salários de políticos para se diminuir a força do lobby? Desestimular a demissão pelas empresas no intuito de se proteger trabalhadores? Aumentar o gasto público a fim de melhorar a qualidade das instituições de bem-estar social? Se estudasse o Brasil, verificaria empiricamente as consequências de suas ideias. É aquele antigo vício dos intelectuais: têm grandes aspirações éticas e bolam belas teorias, mas não gostam de observar suas consequências práticas. 

Sua ojeriza por Trump é, ademais, patética. Não estou defendendo-o; a questão é que Mounk dá um peso extraordinário aos populistas (e ao sensacionalismo dos discursos tanto deles quanto da oposição) e menospreza os movimentos que os geraram. Bem verdade, ele não deixa de mencionar que os populistas são, ao mesmo tempo, causa e consequência da desconsolidação democrática; todavia, o dissenso cultural no seio das sociedades ocidentais foi pouco explorado. Só com muita relutância o autor critica práticas também autoritárias dos opositores (principalmente os de esquerda) e seu relacionamento com a opinião pública em geral. 

Enfim, o livro deve ser lido com cautela. Concordo com a tese do autor e também acredito que os ideais da democracia liberal devem ser defendidos a todo custo. No entanto, Mounk é mais um integrante do “mainstream” acadêmico que adora criticar tudo e todos sem se submeter a essas mesmas críticas, tampouco se sentindo responsável pelas ideias que propaga.




Livro: O Povo contra a Democracia
Autor: Yascha Mounk
Editora: Companhia das Letras
Edição: 1ª, 2019
Idioma: Português Brasileiro
Nota: 2/5

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