Futuro sombrio

Editorial da Gazeta do Povo






Em um país cuja história política é pródiga em bizarrices, podemos dizer com toda a certeza que nada supera a normalização da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República. Falamos de alguém que foi condenado por corrupção em dois processos, com um conjunto probatório farto, tendo ambas as condenações confirmadas por unanimidade no tribunal revisor e uma delas, também de forma unânime, mantida no Superior Tribunal de Justiça, atestando a ausência de ilegalidades processuais. E esse alguém só voltou a se tornar um ficha-limpa porque a principal corte do país inventou – e a palavra é essa mesma – um “problema de CEP”, revertendo decisões que ela mesma havia tomado sobre quem deveria julgar Lula; e uma suspeição absurda que anulou todos os atos processuais do então juiz Sergio Moro, garantindo que Lula jamais tivesse de pagar novamente pelos atos que o levaram à prisão em 2018. Por fim, essa pessoa não apenas disputou a Presidência, mas o fez com apoio maciço da sociedade civil organizada e dos formadores de opinião, que ignoraram todo esse passado para tratar Lula como uma opção aceitável – e até desejável – para o Planalto.




Mas Lula será o próximo presidente do Brasil, tendo vencido o segundo turno com quase 51% dos votos válidos, ou 60,3 milhões de votos, apenas 2 milhões a mais (ou 1,8 ponto porcentual de vantagem) que o atual mandatário, Jair Bolsonaro. Em seu primeiro pronunciamento após a confirmação do resultado, Lula ressaltou sua “ressurreição” política e destacou “um imenso movimento democrático que se formou, acima dos partidos políticos, dos interesses pessoais e das ideologias”, já que sua campanha acabou conquistando o apoio de diversas outras forças políticas. O arco construído por Lula inclui antigos críticos – a começar pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, que enfrentara Lula em 2006 – e antigos criticados, caso de Marina Silva, vítima de uma campanha sórdida do petismo em 2014, e dos economistas responsáveis pelo Plano Real. Muitos deles, é verdade, guiados mais pelo antibolsonarismo que por algum entusiasmo em relação a Lula.




Esta não foi, no entanto, uma eleição marcada pelo equilíbrio que desejaríamos para uma disputa tão acirrada. Não porque tenha havido fraudes ou irregularidades, nem por causa do apoio maciço a Lula na imprensa e na sociedade civil (pois faz parte do jogo democrático que esses setores possam ter e manifestar sua opinião), mas porque a autoridade a quem caberia garantir a igualdade de armas entre os candidatos falhou em sua missão. Independentemente da intenção e das convicções dos ministros do Supremo e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ainda que eles estivessem plenamente convencidos de que estavam defendendo a democracia e apenas combatendo a mentira, o fato é que eles introduziram uma distorção grave no pleito com suas decisões. A Constituição foi atropelada com a instituição da censura, incluindo a ainda mais vergonhosa censura prévia; fatos verídicos, mas inconvenientes a respeito de Lula não puderam ser veiculados, enquanto à campanha petista permitia-se praticamente tudo, graças a uma duplicidade de critérios aplicados a cada candidato. O debate não foi livre como deveria ter sido, e esta é uma mancha que não tem como ser removida da história desta eleição.




O que desejar para um Brasil governado por Lula? O que se espera é que o petista faça um bom governo; se ele governar mal, todos os brasileiros sofrerão as consequências, independentemente de quem tenham escolhido, e o Brasil não merece o retorno aos tempos de crise econômica, social e moral vividos até não muito tempo atrás. Mas também é preciso sermos realistas: para que Lula e o PT façam uma boa gestão, terão de renegar tudo o que o partido defende historicamente tanto em termos econômicos quanto sociais. É possível que isso ocorra? Em primeiro lugar, será preciso definir se as alianças costuradas por Lula em sua campanha serão efetivamente levadas em consideração, puxando o próximo governo mais para o centro, ou se serão descartadas, agora que o objetivo principal já foi atingido. Isso será conhecido apenas à medida que a equipe do próximo presidente for divulgada, especialmente em pastas-chave como Economia, Saúde, Educação, Infraestrutura e os ministérios ligados a políticas sociais.




A segunda barragem que pode evitar uma guinada forte à esquerda do novo governo está no Congresso. Certamente o habitual oportunismo político ajudará Lula a construir uma maioria, com partidos que hoje estão na base aliada de Bolsonaro migrando, totalmente ou ao menos em parte, para o apoio ao próximo presidente. Mas, a julgar pelo perfil dos parlamentares eleitos, não é certo que Lula tenha vida fácil no Congresso, especialmente no Senado. E basta uma das casas para frear qualquer loucura socioeconômica ou identitária que o petismo queira implantar e que necessite do aval do Legislativo. É o tipo de cenário que pode levar ou a um maior senso de responsabilidade da parte do governo, que passaria a propor pautas mais razoáveis, ou a um impasse, com a insistência do Planalto na radicalização sendo barrada no Congresso. Mas uma relativa paralisia ainda será muito melhor para a nação que um passe livre para a implantação da pauta econômica e social da esquerda.

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